De vez em quando alguém me pergunta o que acho da Fraternidade São Pedro, da Comissão Ecclesia Dei, e dos chamados tradicionalistas ligados à Roma. Se eles têm a missa de São Pio V e estão na obediência ao Papa, porque razão nós nos mantemos afastados de Roma? É possível manter a Tradição na Igreja oficial? Porque nós somos marginalizados pelo Vaticano e eles não?

Para responder a esta pergunta de modo adequado é preciso explicar, antes de tudo, como nasceu essa Fraternidade São Pedro, que é uma dissidência da Fraternidade São Pio X e que fez os acordos com Roma, em 1988. E para se compreender o que é a Fraternidade São Pedro, é preciso conhecer a história do famoso protocolo de acordo, assinado por Mgr. Lefebvre e pelo Cardeal Ratzinguer, em 5 de maio de 1988, e depois denunciado por Mgr. Lefebvre, no dia 6 de maio. A crise que assola hoje essa organização que traiu a confiança de Mgr. Lefebvre fora prevista pelo bispo de Ecône. O Vaticano começa a devorar sua presa.

De Mgr. Lefebvre ao Cardeal Hoyos  

1ª Parte

O Protocolo de 1988

A história começa em 1987. Como todos os anos, a data de 29 de junho é aguardada com ansiedade por todos os fiéis da Tradição; é também aguardada por Roma, onde as autoridades do Vaticano se escondem atrás de uma pose de segurança, e que na verdade esconde um receio: eles sabem que Mgr. Lefebvre não fez nada de errado, que sua posição não é cismática, que ele é um bispo zeloso pela doutrina e pela salvação das almas. Não é à toa que em Roma, muitos bispos dizem ao pé do ouvido: Mgr. Lefebvre tem razão, é um santo bispo.

Nesse dia 29 de junho de 1987, na cerimônia das ordenações sacerdotais, realizada como todos os anos, sob a vasta tenda plástica que abriga 4.000 fiéis, deixando outros 6000 sob o forte sol de verão, Mgr. Lefebvre anuncia no sermão que não poderá mais esperar um  sinal positivo de Roma, diante de seus inúmeros pedidos para sagrar bispos que o sucedam no árduo trabalho à frente da Fraternidade São Pio X. Roma não lhe dá ouvidos e Mgr. Lefebvre marca a Sagração Episcopal de quatro novos bispos para a Fraternidade São Pio X, para o dia 30 de junho do ano seguinte, 1988.

Qual o espírito dessa declaração? Haveria no prelado a intenção de se separar de Roma, de fundar uma outra Igreja, uma Igreja paralela? Um cisma? Não! Nada disso passa pela cabeça do ancião, do sábio bispo que tantos serviços já havia prestado à Igreja. E para provar, nada melhor do que ir aos documentos. Dois importantes documentos explicitam as intenções de Mgr. Lefebvre. Eles serão usados nas Sagrações do dia 30 de junho de 1988. Mas já então tinham sido redigidos, pois a necessidade das Sagrações já era antiga. Ei-los:

1- Declaração de Mgr. Lefebvre por ocasião das Sagrações de Ecône, 30/06/1988

2- Carta de Mgr. Lefebvre aos futuros bispos

De um modo geral, dentro dos círculos ligados ao combate pela Tradição Católica, todos estavam acostumados em ver Mgr. Lefebvre tomar as atitudes necessárias nos momentos oportunos. O que teria sido da Igreja se, em 1976, Mgr. Lefebvre tivesse aceitado o apelo do Papa Paulo VI para não realizar as ordenações sacerdotais de Ecône? Diante de grande insistência do Papa e de muitos prelados, o bispo ficou firme e fez aquilo que sempre fizera: ordenou sacerdotes para celebrar o santo sacrifício da Missa.

Dentro do Monastère Sainte Madeleine Dom Gerard Calvet não media palavras para elogiar a atitude de Mgr. Lefebvre. Chegou a fazer um famoso sermão em que alinhavara cinco razões para não temer as  Sagrações.

O fato é que esta declaração feita em 29 de junho de 1987 provocou grande alvoroço em Roma. Mgr. Lefebvre, apesar do que disse no sermão, faz mais uma tentativa e escreve uma carta ao Cardeal Ratzinguer, datada de 8 de julho de 1987 e entregue pessoalmente ao Cardeal, no dia 11  seguinte. Além de conter uma análise sobre a desastrosa Declaração Dignitatis Humanae, sobre a Liberdade Religiosa, esta carta termina assim:

"A fim de travar a autodemolição da Igreja, suplicamos ao Santo Padre, por vosso intermédio, que conceda o livre exercício à Tradição, concedendo-lhe os meios para viver e se desenvolver para a salvação da Igreja Católica e salvação das almas; que sejam reconhecidas as obras da Tradição, em particular os seminários, e que Mons. de Castro Mayer e eu próprio possamos dotar-nos de auxiliares da nossa escolha para conservar à Igreja as graças da Tradição, única fonte de renovação da Igreja.

     Eminência, depois de quase vinte anos de instantes pedidos para que seja encorajada e abençoada a experiência da Tradição, pedidos que ficaram sempre sem resposta, é sem dúvida o último apelo, perante Deus e perante a história da Igreja. O Santo Padre e vós próprio teríeis a responsabilidade de uma ruptura definitiva com o passado da Igreja e com o seu Magistério.

     O Magistério de hoje da Igreja não se basta a si próprio, para se poder dizer católico, se ele não for a transmissão do depósito da Fé, quer dizer, da Tradição. Um Magistério novo, sem raízes no passado e, além do mais, contrário ao Magistério de sempre, só pode ser cismático, ou mesmo herético.

     Uma vontade permanente de enfraquecimento da Tradição é uma vontade suicida, que autoriza, pelo próprio fato, os católicos verdadeiros e fiéis a tomarem todas as medidas necessárias à sobrevivência da Igreja e à salvação das almas.

     Nossa Senhora de Fátima, tenho a certeza, abençoa este último apelo, no 70º aniversário das suas aparições e das suas mensagens. Praza a Deus que não fiqueis uma segunda vez surdos ao seu apelo.

     Dignai-vos aceitar, Eminência, etc.

 

                                        + Marcel Lefebvre

Salta aos olhos as santas intenções do bispo de Ecône. Em nenhum momento é posto em causa algum aspecto pessoal, ligado a alguma opinião própria do bispo. Só o que lhe interessa é a Doutrina bi-milenar da Igreja.

Essa carta provocou uma resposta do Cardeal Ratzinguer que abriu uma pequena possibilidade de Mgr. Lefebvre continuar sua obra e sagrar os bispos para prosseguir as ordenações. Damos à seguir esta carta, onde acrescentamos alguns comentários:

3 - Carta do Cardeal Ratzinguer a Mgr. Lefebvre - 28 de julho de 1987

Apesar dos reparos que assinalamos e outros que poderíamos ter assinalado, Mgr. Lefebvre viu nesta carta uma possibilidade de acordo. Eis o que ele próprio comenta numa conferência à Imprensa, em 15 de junho de 1988:

"Eu tinha, efetivamente, pedido uma visita canônica, para que nos conhecessem, pois não nos conheciam, não vinham ver-nos. Houve, pois, uma abertura de Roma nessa ocasião. Confesso que hesitei bastante. Devia aceitar essa abertura ou recusá-la? Tinha vontade de a recusar, porque não tenho confiança nenhuma nessas autoridades romanas – devo dizê-lo – pois que as suas idéias são totalmente opostas às nossas. Não estamos, em absoluto, no mesmo comprimento de onda. Não tinha, portanto, qualquer confiança.

     Tínhamos sido sempre perseguidos. Era ainda a época de Port-Marly [em que uma igreja onde sempre se celebrou a Missa tradicional, foi brutalmente invadida pela polícia de choque, a mando do bispo de Versailles], da perseguição ao Pe. Lecareux [pelo arcebispo de Bourges], pelas suas paróquias, perseguição aprovada por Roma, pois os bispos eram aprovados por Roma. Tudo isso não nos inspirava confiança, para nos pormos nas mãos de Roma, de uma Roma que combatia a Tradição.

     Quisemos, no entanto, fazer um esforço: vamos tentar..., vamos sondar quais as disposições de Roma a nosso respeito. Foi nesse espírito que fui a Roma e que, depois, recebemos a visita do Cardeal Gagnon. Parece que essa visita foi favorável. Confesso que dela nada sei, pois não recebi uma única palavra sobre o resultado dessa visita que teve lugar há sete meses."

Mgr. Lefebvre escreve, então, novamente ao Cardeal Ratzinguer esta carta que dará origem à famosa visita canônica, realizada tanto na Fraternidade São Pio X quanto em todas as demais obras tradicionais de vários países da Europa, pelo Cardeal Edouard Gagnon.

Posso testemunhar que o Cardeal só fazia exclamar sua admiração e surpresa com o que via, em todas as instituições que visitou: piedade, seriedade, alegria, muitas vocações, todos recebendo-o como um enviado do Papa. Algumas pessoas ouviram-no dizer: "Vocês estão salvando a Igreja!". Compreende-se porque seu relatório desapareceu como por encanto.

Eis a carta de Mgr. Lefebvre ao Cardeal Ratzinguer:

+ Écone, 1 de outubro de 1987

Eminência,

Será a vossa carta de 28 de julho o prenúncio de uma solução?

Alguns indícios permitem-me esperá-lo:

 

-  a ausência de uma declaração faz-nos pensar que somos finalmente reconhecidos como perfeitamente católicos;

-  o contato prolongado com um Cardeal que nos visitaria responde aos nossos anseios tantas vezes expresso;

-  a continuidade da Liturgia segundo os livros litúrgicos em vigor na Igreja em 1962 causa-nos uma profunda satisfação;

-  o direito de prosseguir a formação dos seminaristas como atualmente fazemos, segundo as normas da S. Congregação dos Seminários, também é para nós uma garantia de perenidade de nossa Obra.

 

     Para avançar na via de uma solução, parece-nos indispensável encontrar o Visitador, podendo ele vir a Ecône ou a Rickenbach, na Suiça, ou encontrando-o nós em Albano, para podermos estudar os meios concretos possíveis dessa solução definitiva.

     Não podemos pôr em causa a nossa autoridade em relação aos seminaristas. Seria contrário ao direito que tencionais conceder-nos.

     Devo estar em Albano de 16 a 20 de outubro. Ouso esperar que o desejo que acabo de exprimir já se possa realizar nessa data, para aclarar já o caminho.

     É o P. Du Chalard quem vos levará esta carta. Poderia também comunicar-me a vossa resposta.

     Agradeço-vos antecipadamente e peço-vos, Eminência, etc.

 

 

                                        + Marcel Lefebvre

 

P. S. Desejamos muito que o Cardeal-Visitador seja o Cardeal Gagnon.

*

Podemos dizer que assim termina a primeira fase de toda essa história. Esse conjunto de documentos prova cabalmente que Mgr. Lefebvre nunca teve qualquer intenção de cisma dentro da Igreja. Releia, caro leitor, esta última carta. O bispo de Ecône em hora nenhuma fala de alguma dúvida sobre a legitimidade do Papa, sobre uma possível falta de autoridade em João Paulo II. Não existe esse problema para ele. O que o afeta e o obriga a defender a Fé, são os constantes ataques contra a verdadeira doutrina Católica, contra a Missa Católica, contra o Sacerdócio Católico. Esse é o seu combate, e o Cardeal Gagnon não deixará de notá-lo.

A seqüência de documentos do dossier trata da realização da primeira reunião em vistas a elaborar um protocolo de acordo. Esta primeira reunião foi realizada em Roma, em 13, 14 e 15 de Abril de 1988, contando com um moderador (Pe. Duroux) e um teólogo e um canonista de cada lado. Após quarenta e oito horas de debates foi elaborado um primeiro texto, mais doutrinário do que disciplinar, o que surpreendeu um pouco à Mgr. Lefebvre. Mas havia no texto elementos suficientes para que tentassem ir adiante; afinal de contas, pela primeira vez o Vaticano falava em permitir  sem concessões a Missa de São Pio V, e mesmo aceitava que se criticasse Vaticano II.

Mgr. Lefebvre e o próprio Cardeal Ratzinguer participam, então, junto com os demais, de um novo encontro, nos dias 3 e 4 de Maio, onde fica elaborado o texto do protocolo de acordo. No dia 5 de Maio de 1988, Mgr. Lefebvre assina o protocolo. Eis o texto:

4- Protocolo de Acordo

Eis, assim, realizado um passo importante na história recente da Igreja,  na crise de identidade que a assola desde Vaticano II. A Igreja é uma só, e é Revelada. Essa Revelação manifesta-se na Tradição divina, ou seja, as verdades ensinadas diretamente por Deus e que não foram escritas na Bíblia, e a própria Bíblia, que é a Revelação escrita. Esses dois elementos formam a fonte de nossa Fé. E é por causa do abandono dessa Tradição divina que Mgr. Lefebvre, assim como Dom Antônio de Castro Mayer, em Campos (R.J.)  e muitos padres espalhados pelo mundo, passaram a adotar uma posição crítica em relação ao que vinha do Vaticano.

Essa posição crítica foi aumentando na medida em que as autoridades romanas foram, inexplicavelmente, perseguindo todos aqueles que queriam manter-se fiéis à Tradição imutável da Igreja. Como pode, uma autoridade da Igreja não querer o que a Igreja sempre quis? Proibir o que a Igreja decretou como santo? Destruir todo o patrimônio espiritual da Igreja, legado dos Apóstolos e dos santos doutores? E além disso, aqueles mesmos que  assim agiam, diziam querer repelir a Igreja do Concílio de Trento, criticavam a Igreja da Rocha, falavam na Igreja moderna e evolutiva; rechaçavam a Igreja que eles diziam ser fechada e sem caridade e pregavam uma nova Igreja, aberta ao mundo. E isso tudo não era apenas dito com palavras, eram idéias postas em prática em todas as paróquias do mundo católico. Um padre, um bispo que quisesse continuar católico, só podia opor-se a todo esse conjunto de erros e de atitudes destruidoras da Tradição da Igreja. A influência do Protestantismo tornava-se cada dia maior, e os dogmas foram sendo, um a um, derrubados, como se fossem passíveis de mudanças. As imagens  arrancadas das igrejas; estas rapidamente transformaram-se em templos protestantes, sem nenhuma sacralidade. Nossa Senhora tratada como uma mulher qualquer; a Santa Missa já não exprimindo o Santo Sacrifício da Cruz, mas sendo definida e vivida como uma refeição presidida pelo  padre, mas oficiada pela assembléia de fiéis; do batismo retirou-se o sal bento e os exorcismos, mudaram as formas da Crisma, da Extrema-Unção, da Ordem; a presença Real de Nosso Senhor na Sagrada Hóstia foi diminuída até tornar-se uma presença simbólica, bem ao estilo protestante. Mudaram o Catecismo, mudaram os sacramentos, mudaram a Missa, mudaram a Bíblia, mudaram a linguagem, mudaram as vestes sacerdotais, mudaram a língua litúrgica. Seria o caso de se perguntar: O que ficou de pé, depois da avalanche de Vaticano II? E a resposta é: nada!  Os progressistas iam ao encontro das almas tradicionais sempre com duas pedras na mão: assim foram os dois legados do Papa, dois bispos belgas, que foram fazer uma visita canônica ao Seminário de Ecône, em 1974: espírito modernista, vingativos, negativos, rindo-se de tudo o que era católico em nome da Nova Igreja Conciliar.

Estou dizendo isso tudo para explicar porque Mgr. Lefebvre diz, na entrevista à imprensa que já citei acima, que ele aproximou-se das autoridades romanas mas sem deixar de desconfiar delas. Já tinha muitas experiências desagradáveis em relação a elas (cf. conferência de Mgr. Lefebvre sobre a mudança da Missa). Esta situação da vida da Igreja na época joga uma luz esclarecedora sobre a seqüência dos acontecimentos que narraremos a seguir.

*

Uma vez assinado o protocolo de acordo abriram-se as portas para uma solução rápida da situação da Fraternidade S. Pio X. Normalmente a boa vontade do Papa e do Cardeal Ratzinguer os levaria a deixar as coisas seguirem seu rumo. Mas não foi isso que aconteceu. Ouçamos Mgr. Lefebvre narrar, na Entrevista Coletiva já citada, de 15 de junho de 1988:

"O protocolo estava, pois, assinado. A imprensa anunciou: Acordo entre Mgr. Lefebvre e o Vaticano; parece que as coisas se arranjam, que tudo vai se arranjar.

     Pessoalmente, como já vos disse, tinha pouca confiança. Sempre tive um sentimento de desconfiança e devo confessar que sempre pensei que tudo quanto eles faziam era para nos levar a submetermo-nos, a aceitarmos o Concílio e as reformas pós-conciliares. Não podem admitir – e, aliás, o Cardeal Ratzinguer disse-o recentemente, numa entrevista a um jornal alemão: “Não podemos aceitar que haja grupos, depois do Concílio, que não admitem o Concílio e as reformas que foram feitas depois do Concílio. Não podemos admitir isso.” O Cardeal Ratzinguer repetiu várias vezes: “Monsenhor, há uma só Igreja; não pode haver Igreja paralela.” Eu disse-lhe: “Eminência, não somos nós que fazemos uma Igreja paralela, porque nós continuamos com a Igreja de sempre. Os senhores é que fazem uma Igreja paralela ao inventar a Igreja do Concílio, essa que o Cardeal Benelli chamou a Igreja Conciliar. Os senhores fizeram novos catecismos, novos sacramentos, uma nova missa, uma nova liturgia, não somos nós. Nós continuamos o que anteriormente se fazia. Não somos nós que fazemos uma nova Igreja!”

     Sempre sentimos, portanto, ao longo desses colóquios, um desejo, uma vontade deles nos submeterem ao Concílio.

     Bem. Apesar de tudo, tentei mostrar boa vontade, mas, no dia em que decidimos assinar, perguntei ao Cardeal Ratzinguer, a propósito do bispo: “Agora que vamos assinar o protocolo, já podem indicar a data da consagração do bispo (estávamos a 4 de maio). Tem tempo até 30 de junho para me dar o mandato para o bispo. Eu próprio participei na apresentação de bispos quando era Delegado Apostólico – de trinta e sete bispos: sei como isso se faz...”

     Já tinha apresentado os nomes, já estavam no Vaticano, três nomes, a chamada “terna”. É um termo clássico em Roma para designar os três nomes dos bispos que são propostos; e a Santa Sé escolhe entre esses três nomes. Dei, pois, três nomes. “Daqui até 30 de junho o senhor tem tempo de preparar, de fazer um inquérito e de me dar o mandato.”

     “Ah! Não, não, é impossível! Para 30 de junho é impossível! – Então quando? Em 15 de agosto? No fim do Ano Mariano? – Ah! Não, não, Monsenhor! O senhor sabe que em 15 de agosto, em Roma, não há ninguém! De 15 de julho a 15 de setembro são as férias. Não se pode pensar em 15 de agosto, é impossível! – Digamos então o 1º de novembro, dia de Todos os Santos? – Ah! Não sei, não posso dizer. – Para o Natal? – Não posso dizer.”

     Eu disse: já percebi... Estão brincando conosco... Pois bem, acabou-se! Já não tenho confiança. Eu tinha toda a razão em não ter confiança. Estão brincando conosco. Perdi completamente a confiança...

     E no dia 6 de maio, escrevi uma carta ao Papa e uma ao Cardeal Ratzinguer, dizendo: “Tinha esperado chegar a um resultado, mas creio que já não é possível. Vê-se muito bem: há uma vontade, por parte da Santa Sé, de nos submeter às suas vontades e às suas orientações. Não vale a pena continuar. Estamos em completa oposição.”

Grande alvoroço em Roma, nessa altura, por causa da carta que escrevi. "

*

Quando este fato foi  comunicado aos fiéis que acompanhavam, rezando, os colóquios com Roma, houve, sem dúvida, inquietação. É claro que havia em todos grande confiança na sabedoria de Mgr. Lefebvre, como também todos desejavam ardentemente que enfim, fosse aceita a Tradição, pelo menos como "opção" legítima.  Não fora ainda dessa vez, mas passos importantes haviam sido dados.

No mosteiro do Barroux, ao contrário do que muitos pensam, Dom Gerard Calvet fez declarações à comunidade, assim como aos fiéis, de grande vigor de pensamento, elogiando a atitude de Mgr. Lefebvre. Lembro-me com perfeição de um momento crucial na vida daquele mosteiro, ocorrido no domingo 19 de junho de 1988. Dom Gérard celebrou a missa conventual, das 10:00 da manhã. Pedira-me que fosse ao parlatório assim que terminasse a missa, receber um jornalista famoso que mantinha um programa dominical numa rádio francesa, muito ouvido porque volta e meia tomava a defesa de Mgr. Lefebvre, apesar de não freqüentar a Missa Tradicional. Seu nome era François, mas não me recordo mais o sobrenome. Ao chegar ao parlatório, a esposa do jornalista mostrou-se muito aflita com a atitude de Mgr. Lefebvre, e eu, jovem sacerdote, meio sem graça, dizia que devíamos rezar, que a Providência mostraria o caminho a Mgr. Lefebvre, e coisas desse teor. Foi quando chegou Dom Gérard, tendo terminado sua "ação de graças". Ao entrar no parlatório fiz as apresentações e disse que eles estavam muito apreensivos. Dom Gérard num élan que chegava a ser bonito e tocante fez então a apologia da atitude de Mgr. Lefebvre. Vivendo há oito anos no contato direto com aquele monge, posso dizer com certeza que aquilo era sincero: "De jeito nenhum! madame, Mgr. Lefebvre está salvando a Igreja. Não tenham medo, vocês verão adiante" etc.

Foi quando, no meio da conversa, Dom Gérard foi chamado ao telefone.....Do outro lado da linha, Mgr. Perl, o secretário do Cardeal Mayer...... e então tudo desmoronou! O Cardeal Mayer, presidente da recém-fundada Comissão Ecclesia Dei, para tratar dos assuntos referentes aos fiéis da Tradição, queria vir ao Mosteiro propor o acordo que Mgr. Lefebvre havia recusado

No dia 20, segunda-feira, Dom Gérard reuniu na Sala Capitular, dez padres do mosteiro, para expor a situação e perguntar o que devia ser feito. Eu fui o único a dizer que devíamos gentilmente mandá-lo de volta a Roma!

Dia 21 de junho de 1988 as portas do Monastère Sainte Madeleine foram largamente abertas para a entrada triunfal do cardeal, que vinha em pele de cordeiro propor a destruição de uma comunidade formada em torno da obra de combate pela Tradição e que depunha as armas. A reunião com o Cardeal foi lamentável, começando com o Cardeal chorando. Repito: o Cardeal chorou lágrimas de crocodilo diante de onze monges atônitos e de um prelado sinistro chamado Camille Perl. Em seguida ele ofereceu o bolo envenenado: tudo o que queríamos do ponto de vista litúrgico e doutrinário, com uma única condição: romper com Mgr. Lefebvre.

Ora, em 1984 Dom Gérard recebera do Presidente da Federação Beneditina esta mesma proposta. Ele a recusara dizendo: "o senhor me  pede para trair. Eu não sou um traidor!"

Hoje, quatro anos depois, Dom Gérard aceita trair a confiança e a amizade de um bispo que tudo fez para apoiá-lo, graças a quem a pequena comunidade de Bédoin subsistiu e cresceu, tornando-se uma das referências do combate pela Tradição católica na França.

Daí para a frente foi só a morte rápida da comunidade onde fiz meus votos monásticos para viver minha vida dentro de um catolicismo autêntico. Os padres da Fraternidade São Pio X mais escrupulosos e fracos passaram a freqüentar os corredores do Barroux, armando sua jogada triunfal: fundar uma nova sociedade de padres traidores do seu bispo. Cegos, ouvindo um canto de sereia enganador. Dom Gérard os aconselhava, e ia escondido armando sua jogada: fazer com que sua comunidade recebesse gota a gota as doses homeopáticas da virada, para que não houvesse reações contrárias. Nessa época, muitos irmãos e padres não queriam, de modo algum, afastarem-se de Mgr. Lefebvre. Mas a habilidade de Dom Gerard e a malícia do sub-Prior, certamente infiltrado dentro da comunidade para alcançar esse fim, foi virando as cabeças. Fui acompanhando enquanto pude, até que, em 26 de agosto fiz minhas malas e voltei ao Brasil, para ajudar Dom Tomás em Friburgo, a manter o Mosteiro da Santa Cruz.

Narro esses acontecimentos para mostrar o trabalho do demônio numa hora crucial como essa. Essa virada da cabeça do Prior do Barroux, na hora do telefonema do Cardeal Mayer, é muito significativa.

Em 30 de junho de 1988, na hora das Sagrações, os padres traidores se reuniam na Abadia de Hautrive, na Suíça, para fundar a Fraternidade São Pedro. Pretendiam eles manter a Tradição, porém na obediência à Roma. Pretendiam eles manter a missa de São Pio V e nunca celebrar a missa nova. Pretendiam eles poder criticar à vontade Vaticano II e seus erros. Pretendiam eles ter as  portas abertas em todas as dioceses para se instalar à vontade. Pretendiam eles conseguir o que o "pobre coitado" do Mgr. Lefebvre, velhinho esclerosado, nunca conseguira, viver a Tradição de dentro da Roma modernista...

Coitados, quanta pretensão. A seqüência dessa história mostrará o que aconteceu com eles e como a Fraternidade São Pedro e todos os institutos que fizeram os acordos foram engolidos pela Roma modernista. Vamos ver como aconteceu.

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