Viagem à França
Dom Lourenço Fleichman OSB
A França é conhecida como a Fille ainée de l´Église, a filha mais velha da Igreja. Considerada a primeira nação a se formar sob a sombra da Cruz de Nosso Senhor, para servir a Deus e a sua Igreja, desde o batismo de Clóvis, em 25 de dezembro de 496, realizado por São Remígio, até os dias de hoje.
Se é verdade que seus pecados se espalharam pelo mundo, principalmente pelo
espírito da Revolução Francesa que, de certa forma, está presente em todas as
Revoluções; se é verdade que hoje, enquanto nação, a França está no rol dos
inimigos de Deus e de sua Igreja, difundindo erros, filosofias, imoralidades e
liberalismos, no entanto, ainda é lá na terra de São Luiz, de São Bernardo, na
terra por onde cavalgou a "fillette", a menina Jeanne, la Pucelle,
Joana d´Arc,
restaurando a coroa de França; na terra dos santos que se
espalharam pelo mundo como Santa Teresinha, é lá nessa terra que, ainda hoje,
vamos mergulhar para reencontrar a seiva do cristianismo, do estudo, do
pensamento que deseja a verdade, da fé que nela desabrocha.
Foi nesta velha França que estive durante quinze dias, para remoçar a fé, o sacerdócio e a vida monástica. Dias de estudos e de encontros, que hoje participo a todos nossos fiéis e leitores.
No dia seguinte à minha chegada fui até a região de Angers. Nesta cidade domina um castelo medieval meio em ruínas. As imponentes torres construídas em pedras brancas e pretas, formando linhas horizontais, escondem uma maravilhosa obra do século XIV, o conjunto de tapeçarias do Apocalipse. Os diversos quadros somam mais de cem metros e descrevem as visões de São João descritas no último livro da Bíblia.
Não longe dali, já na saída da cidade, encontra-se um campo arborizado. Uma
capelinha marca o massacre dos católicos de Avrillé, pelo terror da Revolução
Francesa. E mais adiante o Convento dos Dominicanos que restauraram a ordem de
São Domingos depois da destruição operada por Vaticano II.
Entre outros trabalhos importantes, os dominicanos editam a já famosa revista Le Sel de la Terre (O Sal da Terra), nos seus quatro números anuais de estudos teológicos, filosóficos e culturais.
Ali também se encontra um convento feminino de dominicanas contemplativas, que recebem muitas vocações do mundo todo para o claustro e a oração. Na verdade não podemos nos dar conta da quantidade de mosteiros, de escolas, universidades, capelas fiéis a Tradição que se espalham pela França e por toda a Europa. Seis seminários da Fraternidade, seis Carmelos, os dominicanos, escolas de dominicanas professoras, os capuchinhos e clarissas, outras ordens, Associações de leigos que fomentam a fé das famílias, escoteiros, etc.
Junto com os dominicanos voltei a Paris na quinta-feira, dia 3 de outubro, dia de Sta Teresinha. Na última vez que tinha estado na França, em 1997, parti de Angers para a Peregrinação do Centenário da morte da santinha de Lisieux. Diante do grande relicário oferecido pelos fiéis brasileiros rezei, naquele ano, por todos os brasileiros que perseveram na Tradição católica.
O Simpósio Teológico
Em Paris, nos dias 4 e 5 de outubro, reuniram-se uns cinqüenta padres e alguns leigos, professores universitários, escritores, para o Simpósio Teológico sobre os textos do Concílio Vaticano II. Separados em seis comissões, realizaram-se dezenas de conferências e discussões chegando-se a um texto final, como que uma declaração, sobre o Concílio.
As comissões de estudo eram as seguintes: (Clique nos títulos para ver
o resumo esquemático das conferências)
- 1ª Comissão: Sobre o homem e a sociedade
- 2ª Comissão: Sobre a Igreja
- 3ª Comissão: Relações com as outras
religiões
- 4ª Comissão: Os Sacramentos
- 5ª Comissão: As Fontes da Fé
- 6ª Comissão: História do Concílio
Os membros de cada comissão assistiam às conferências e discussões de sua comissão. Em alguns momentos foram feitas reuniões plenárias para se discutir o texto final. Na última tarde, na presença de Dom Tissier de Mallerais e de Dom Willianson, bispos da Fraternidade S. Pio X, chegou-se a um acordo sobre o texto. Este não seria uma declaração para as autoridades da Igreja, nem propriamente um texto para mostrar nossa posição aos que não a compreendem, mas um resumo muito breve dos trabalhos, a ser passado aos fiéis da Tradição. Leia o texto final do Simpósio
A Paróquia de Saint Nicolas du Chardonet
Durante esses dias do Simpósio, todos os padres celebravam a Santa Missa na
Igreja de São Nicolas du Chardonet. Trata-se de uma grande paróquia que estava
meio entregue às moscas, em 1977. Nessa ocasião, os católicos tradicionais de
Paris, comandados pelos padres Mgr. Ducaud-Bourget, Pe. Coache e outros,
realizaram uma feito extraordinário. Reuniram-se nas proximidades da igreja,
entraram em procissão com o Santíssimo e começaram a celebrar a Missa de S. Pio
V, a missa católica, que tinha sido expulsa das igrejas em 1970. Uma vez a missa
terminada, começaram imediatamente outro ofício e mais outro. Existe na França
uma lei que proíbe que um culto seja interrompido, além do fato das igrejas
serem propriedades
do
Estado. Assim sendo não puderam retirar dali os católicos que só pediam uma
igreja para celebrar o culto católico de sempre. É aí que vemos a coragem e a
disposição desses "gauleses". Organizaram as vigílias noturnas, as cerimônias
que não se interrompiam e não havia como retirá-los de lá. Começaram as
negociações. A cúria diocesana perseguiu, furiosa, esses bons pais de família
que lutavam pela sua fé. Conseguiram que se cortasse a luz, a água etc. Mas os
advogados já estavam trabalhando. E hoje, São Nicolas du Chardonet é um bastião
da fé tradicional no coração de Paris, em pleno Quartier Latin, ao lado da
famosa avenida Boulevard Saint Germain e muito próximo de Notre Dame e da
Sorbone.
Aí nesta igreja tive a honra de oficiar como Sub-diácono na missa que Dom Tissier de Mallerais celebrou no domingo de manhã, antes de irmos para a Jornada de Obras da Tradição. Como encerramento do Simpósio, num local de convenções próximo à Gare d´Austerlitz, dezenas de instituições, conventos, editores, artistas etc. montaram seus stands com venda de livros, objetos, apresentações das suas obras etc. Nossa capela de Nossa Senhora da Conceição marcou presença com algumas fotos ampliadas da nova igreja. Durante este domingo, 6 de outubro, aconteceram ainda algumas conferências, desta vez abertas ao público que lotava as salas para ouvir alguns padres e bispos. Também foi o dia do lançamento da biografia de Mons. Marcel Lefebvre, escrita por um dos bispos da Fraternidade São Pio X, dom Tissier de Mallerais, obra de 700 páginas, muitas fotos e principalmente, escrita com base em fontes seguras e documentadas.
A Abadia de Notre Dame de Bellaigue
Nesta mesma tarde tomei o trem para Montluçon, ao sul de Paris umas três
horas de trem. Dali me conduziram a Bellaigue, onde fica a fundação realizada
pelo nosso Mosteiro da Santa Cruz. A igreja abacial é do século XIII. A
construção das salas
e
dependências do mosteiro datam do século XVIII. Tudo isso estava em ruínas desde
a Revolução Francesa que invadia as casas religiosas matando, destruindo as
imagens e derrubando as paredes das jóias da arquitetura medieval. A abóbada da
igreja estava destruída em mais da metade, restando apenas as paredes. Pois a
Divina Providência quando quer realizar uma obra, move a ação e o coração dos
homens. Eis que há alguns anos atrás, uma família rica comprou a abadia para
restaurá-la e para explorar o lugar turisticamente. Gastaram muito dinheiro,
refizeram a cúpula e telhado da igreja, o telhado do mosteiro, parte hidráulica,
elétrica, o emboço interno onde as pedras estavam muito destruídas. Tudo com
muito bom gosto e arte. Quando tudo já estava pronto, apareceram os monges do
Brasil que, ajudados pela enorme generosidade dos franceses, queriam comprar a
abadia. O senhor rico foi generoso também e os fiéis da França realizaram
mais este feito. Pagaram em seis meses a compra da abadia.
No dia seguinte, 7 de outubro, festa de N. Sra do Rosário, nosso Bernardo
Dumas, da capela de Niterói, o frère Placide, pronunciou os votos monásticos por
três anos. Foi uma graça de Deus eu ter podido assistir a esta belíssima
cerimônia em que um jovem promete a Deus a obediência, a castidade e a pobreza,
promete a estabilidade no seu mosteiro e entrega-se de corpo e alma a uma vida
escondida para elevar um canto à glória do Salvador, para louvar e agradecer por
todas as graças que, todos os dias, recebemos de suas mãos. O Suscipe me
Domine, do salmo 118, ecoou nas abóbadas medievais como outrora. E o eco
respondeu como que representando tantos e tantos irmãos em São Bento que ali
mesmo, se prostraram por terra para se entregarem a Deus. Respondeu também por
aqueles que derramaram seu sangue no martírio pela espada dos revolucionários
assassinos. "Recebei-me, Senhor, segundo a vossa Palavra, e viverei - e de
minhas esperanças não serei confundido". Respondeu como que dizendo: vinde,
irmão Plácido, entrai nesta milícia sobrenatural de Nosso Bem-aventurado
Patriarca São Bento; no seu silêncio do claustro estarás junto a nós, aqui, no
silêncio do céu.
Foram cinco dias de vida monástica nas terras da Auvergne, de pequenas ondulações, grandes árvores, muita água (Bellaigue significa belas águas), um lugar lindo. Também rico em velhas igrejas românicas, algumas delas já marcando a evolução tecnológica que daria origem às grandes catedrais góticas, que terão, cinqüenta anos mais tarde, o cruzamento de ogivas e enormes janelas cobertas de vitrais.
Um encontro inesperado
No último dia, quinta-feira 10 de outubro, chegou em Bellaigue o Padre Bruno
Bichot OSB. Tinha acabado de sair do mosteiro do Barroux, no sul da França. Na
verdade, o Père Bruno foi meu companheiro de noviciado no Barroux, tendo
mesmo
assistido a minha tomada de hábito, em 7 de outubro de 1980, ainda como leigo.
Ele também entraria no mosteiro alguns dias depois. Pude conversar longamente
com ele o que muito me edificou. Devemos rezar para que ele siga as indicações
da graça que, se Deus quiser, o levará também para Bellaigue.
Essas são as especiarias, as jóias que trago de terras distantes para enriquecer nossas almas. Nas asas da grande águia fui e voltei lutando contra dragões, escalando torres medievais, ouvindo o canto dos anjos nas abóbadas da terra. Pisei em terra sagrada, lavada pelo sangue dos mártires e ali também derrotei mil inimigos. Conheci cidades grandes banhadas por águas envenenadas cercada de demônios que cuspiam fogo pelas narinas. Passavam por mim como que impotentes, querendo entender o significado de um hábito religioso, de um monge tonsurado, no meio daqueles perigos, daquele mundo de pecados. Passei incólume e gritei, gritei em praça pública o testemunho de Cristo, sua fé e seu Evangelho. E preguei. Ensinei a todos quanto quisessem ouvir que o Sangue derramado por Cristo na Cruz navega pelos mares até terras de brasis, terra da Santa Cruz. Vim portanto navegando neste Sangue Sagrado e aporto neste oásis do céu que é a nossa capelinha. E o que trago? O que vem comigo da terra dos santos? Nada. Nada além daquilo que já tínhamos, pois a maior das riquezas está no sacrário, dentro de nossa igrejinha, dentro de nossos Corações. Jesus sacramentado, sua Igreja, esposa, aqui, na França e em toda a parte. A fé e a vida sobrenatural, passada sob o olhar de Deus, desde o amanhecer. Isto é o que temos, isto é o que trouxe, minha lembrança de viagem. O justo vive da Fé.