Sermão de 19 de março de 1657
O FIEL DEPOSITÁRIO
BOSSUET
É opinião generalizada e sentir comum entre os homens
que o depósito, isto é, um bem que recebemos para guardar, tem qualquer coisa
de sagrado e que o devemos conservar para quem no-lo confia não somente por
fidelidade mas por uma espécie de sentimento religioso. Por isso o grande Santo
Ambrósio nos ensina no livro 29 de seus Ofícios que era piedoso
costume estabelecido entre os fiéis o de trazer aos bispos e a seu clero aquilo
que se queria guardar com mais cuidado, para que fosse colocado junto ao altar,
em virtude da santa persuasão em que estavam de que não havia melhor lugar
para guardar um tesouro do que aquele ao qual o próprio Deus confiou a guarda
dos seus, isto é, os santos mistérios.
Este costume se tinha introduzido na Igreja a exemplo da
sinagoga antiga. Lemos na História Sagrada que o augusto templo de Jerusalém
era lugar de depósito para os judeus. Autores profanos também nos ensinam que
os pagãos tributavam esta honra a seus falsos deuses, colocando seus depósitos
nos templos e confiando-os a seus sacerdotes, como se a própria natureza das
coisas nos ensinasse que o respeito ao depósito tem algo de religioso e que não
pode estar mais bem colocado do que nos lugares santos onde se reverencia a
Divindade, nas mãos daqueles que a religião consagra.
Ora, se jamais existiu depósito que merecesse tanto ser
chamado santo, santamente guardado, é este de que falo, que a providência do
Pai confia à fé do justo José, tanto assim que sua casa se assemelha a um
templo porque Deus aí se digna habitar e entregar-se a Si próprio em depósito.
José deve ter sido, portanto, consagrado a fim de guardar tão santo tesouro. E
realmente o foi, cristãos: seu corpo pela continência, sua alma por todos os
dons da graça. [...]
No
projeto que me proponho, o de apoiar os louvores a São José, não em
conjeturas duvidosas mas em doutrina sólida tirada das Escrituras divinas e dos
Padres seus intérpretes fiéis, nada de mais conveniente posso fazer, na
solenidade deste dia, do que apresentar este grande santo como um homem que Deus
escolheu entre todos os outros para lhe pôr nas mãos Seu tesouro e fazê-lo,
aqui na Terra, seu depositário. Pretendo fazer ver hoje que nada melhor lhe
convém, que nada existe tão ilustre e que esse belo título de depositário,
desvendando-nos os desígnios de Deus sobre esse bem-aventurado patriarca, nos
mostra a fonte de todas as graças e o fundamento seguro de todos os louvores.
Primeiramente, cristãos, é-me fácil fazer-lhes ver o
quanto esta qualidade é, para ele, honra, porque, se o título de depositário
já inclui a nota de estima e testemunho de probidade, se para
confiar um depósito costumamos escolher entre nossos amigos aquele cuja virtude
é mais reconhecida, cuja fidelidade é mais comprovada, enfim o mais íntimo e
mais confidente, qual não será glória de São José, que Deus fez depositário
não somente da bem-aventurada Virgem Maria, cuja pureza angélica a torna agradável
a Seus olhos, mas ainda de Seu próprio Filho, único objeto de suas complacências,
única esperança de nossa salvação: de modo que guardando a pessoa de Jesus
Cristo, São José é instituído depositário do tesouro comum de Deus e dos
homens. Que eloqüência poderá igualar a grandeza e a majestade desse título?
Então, fiéis, se esse título é tão glorioso e
vantajoso àquele a quem devo hoje fazer o panegírico, é preciso que eu mesmo
penetre em tão grande mistério com o socorro da graça; e que, procurando nas
Escrituras o que aí lemos sobre José, vos faça ver que tudo converge para
esta bela qualidade de depositário.
Efetivamente encontro nos Evangelhos três depósitos
confiados ao justo José pela Providência divina, e ali também encontro três
qualidades que refulgem entre as outras e que correspondem a esses três depósitos.
É o que precisamos explicar por ordem. Segui, por favor, atentamente.
O primeiro de
todos os depósitos que foi confiado à sua fé (o primeiro na ordem do
tempo) é a santa virgindade de Maria, a qual São José devia conservar intacta
sob o véu sagrado do seu matrimônio, que ele sempre guardou santamente como um
depósito sagrado que não lhe era permitido tocar. Eis o primeiro depósito.
O segundo, o mais augusto, é a pessoa de
Jesus Cristo, que o Pai celeste depõe em suas mãos a fim de que lhe sirva de
pai, ao Santo Menino que não o tem na Terra. Vede, desde já, cristãos, dois
grandes, dois ilustres depósitos confiados ao zelo de São José. Mas observo
ainda um terceiro, que acharão admirável, se eu conseguir explicá-lo
com clareza. Para isso é preciso compreender que o segredo é uma espécie de
depósito. Trair o segredo de um amigo é como violar a santidade do depósito.
Pelas leis humanas sabemos que, se alguém divulga o segredo de um
testamento a ele confiado, pode ser acusado de ter violado o depósito: Depositi
actione tecum agi posse, dizem os juristas. É evidente, pois, a razão
por que o segredo é como um depósito. Por onde podemos facilmente compreender
que, se José é o depositário do Pai eterno, é porque Este lhe contou o Seu
segredo. Que segredo? Um segredo admirável: a encarnação de Seu Filho.
Assim, porque, como sabemos, era desígnio de Deus
esconder Jesus Cristo do mundo até que Sua hora houvesse chegado, São José
foi escolhido não somente para O guardar mas também para O esconder. Por isso
lemos no Evangelista (S. Lucas 2, 33) que José, com Maria, admirava tudo o que
se dizia do Salvador, mas não lemos que ele falasse, porque o Pai eterno,
desvendando-lhe o mistério, fez dele um segredo sob a obrigação do silêncio.
Este segredo é o terceiro depósito que o Pai acrescenta aos outros dois.
Segundo o que nos diz o grande São Bernardo, Deus quis confiar à sua fé o
segredo mais santo de seu coração: Cui toto committeret secretissimum atque
sacratissimum sui cordis arcanum (Super Missus est — hom. 2,
no 15).
Como sois querido de Deus, ó incomparável José, já
que Ele a vós confia esses três grandes depósitos: a Virgindade de Maria, a
pessoa de Seu Filho único e o segredo de Seu mistério!
Mas não julgueis, cristãos, que ele desconhecia essas
graças. Se Deus o honrava com aqueles três depósitos, de sua parte José
apresentava a Deus, em sacrifício, três virtudes que observo no Evangelho. Não
duvido que sua vida tenha sido ornada com todas as outras, mas eis aqui as três
principais virtudes que Deus quer que vejamos na sua Escritura. A primeira
é a pureza, que aparece pela continência no seu matrimônio; a segunda, sua
fidelidade; a terceira, sua humildade e seu amor à vida obscura. Quem não verá
a pureza de São José nesta santa sociedade de desejos pudicos, nesta admirável
correspondência à Virgindade de Maria e em suas bodas espirituais? A segunda,
sua fidelidade, aparece nos cuidados infatigáveis que tem para com Jesus no
meio das tantas adversidades que por todas as partes seguem esse Menino divino
desde o começo de sua vida. A terceira, sua humildade, vê-se em que,
possuindo tão grande tesouro por uma graça extraordinária do Pai eterno,
longe de se vangloriar por esses dons ou de publicar suas vantagens, se esconde
tanto quanto pode aos olhos dos mortais, contemplando, em gozo pacífico com
Deus, o mistério que lhe fora revelado e as riquezas imensas que tem sob sua
guarda.
Ah! Quanta grandeza descubro aqui e como aqui descubro tão
importantes instruções! Quanta grandeza vejo nesses depósitos, quantos
exemplos vejo nessas virtudes! E como a explicação desse assunto tão belo será
glorioso para São José e frutuoso para todos os fiéis!
(PERMANÊNCIA,
ano XI, março/abril, números 112/113.)