Apresentação da Encíclica Pascendi
Apresentar a encíclica Pascendi, de São Pio X, colocando-a no seu contexto histórico, filosófico e teológico, é trabalho árduo que exige algo de erudição e de estudo que não possuo. Por isso, fui desenterrar, com muito proveito, «a única obra em português a propósito do "modernismo teológico" condenado na encíclica Pascendi de S. Pio X». Trata-se dos artigos do Pe. Leonel Franca, S.J. publicados no volume III de suas Obras Completas (Agir, 1953), entitulado Polêmicas. Estes artigos compõem o capítulo desta obra que recebeu o título de Catolicismo e Modernismo.
Antes, porém, de dar a palavra ao ilustre jesuíta, chamo a atenção do leitor para a impressionante atualidade desta encíclica. Basta conhecer o pensamento do progressismo dos nossos dias, basta viver e sofrer com as falsas doutrinas que eles nos impõem, para ver que, verdadeiramente, o Concílio Vaticano II foi a oficialização do Modernismo: gosto pelas novidades, estudo de autores protestantes, colegialidade democrática, laicização da liturgia, ecumenismo e liberdade religiosa. O Modernismo viveu escondido desde a fulminante condenação da Pascendi até 1962. Escondido mas vivo. Subterrâneo. Esgueirando-se pelos seminários, através de diversas publicações clandestinas que passavam de mão em mão e que foram formando os novos modernistas que dominaram a Igreja no último Concílio. Se quiserem mais detalhes sobre este fato, basta ler a série de artigos publicados pelo jornal SimSimNãoNão, sobre a Nova Teologia (nove artigos publicados entre 1993 e 1994, entitulados Os que pensam que venceram - Encomendas e assinatura à C.P. 96582 cep: 28601-970 Nova Friburgo R.J. Brasil). E para se certificarem que, de fato, o Concílio Vaticano II foi um concílio modernista, recomendo o livro de Dom Marcel Lefebvre: Do Liberalismo à Apostasia, Ed. Permanência (clique no botão "Livros", no menu) e a conferência do mesmo bispo que se encontra aqui em "Crise da Igreja".
Tanto os artigos do Pe. Leonel Franca quanto o texto da própria encíclica foram transcritos aqui, preservado o português. No caso da encíclica, a tradução é do Cardeal Arcoverde, então Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro, à qual nos permitimos pequenas adaptações de linguagem.
Segue o texto do Pe. Leonel Franca, verdadeira aula, talvez aqui e ali densa, mas de bom proveito para quem quiser entender alguma coisa sobre o Modernismo e sobre a Pascendi. Recomendo que se leia este texto com vagar, como verdadeiro estudo.
Extratos de Catolicismo e Modernismo
Modernismo
Foi nas fontes intoxicadas do protestantismo liberal que os modernistas foram beber as suas doutrinas subversivas do cristianismo que civilizou a Europa. Já há vários anos uma corrente de apologistas católicos frisava com a importância dos elementos afetivos na conquista da fé, a harmonia entre os nossos dogmas e as mais profundas aspirações da natureza humana. Enquanto, porém, os mais prudentes e penetrantes diligenciavam, dentro dos limites da ortodoxia, por utilizar os germes fecundos e separar o ouro da ganga na corrente sentimentalista, outros, espíritos aventureiros e superficiais, se afanavam por agravar os paradoxos, encarecer as ousadias perigosas e joeirar os elementos suspeitos e deletérios para aglutiná-los em sistemas incoerentes. É o critério que, das justas e sensatas, distingue as inteligências falsas e desequilibradas.
Neste
meio recolheu a escola modernista os seus adeptos. Mais conhecidos entre eles,
na Alemanha, foram: Gebert e os redatores da revista Das
neue Jahrhundert; na a Itália, o senador Fogazzaro e o Pe. R. Murri, que a
febre da ação social precoce afastou bem cedo dos estudos sérios; na França,
E. le Roy, leigo, bom matemático mas filósofo amouco de Bergson, A. Loisy,
sacerdote, de formação teológica notoriamente sumária, a quem já em 1903
publicamente censurara o arcebispo de Paris pela heterodoxia de suas opiniões
matizadas de hegelianismo; na Inglaterra, J. Tyrrel, ex-jesuíta, convertido,
que nunca se desembaraçou inteiramente dos preconceitos de sua primeira educação
protestante. Estes soldados das novas idéias lutavam aqui e ali, não como um
exército disciplinado, conduzido por um chefe para a realização de um plano,
mas como franco-atiradores, avulsos e independentes. Idêntico, porém, era o
espírito que os animava, idênticos os princípios que lhe informavam a
atividade intelectual. Se calhava cruzarem-se no caminho, um gesto, uma palavra
bastavam para se compreenderem. Loisy, no seu L’Evangile
et l’Eglise, cita um só filósofo e este é Ed. Caird, que mais tarde
iria colaborar no Rinnovamento, órgão
modernista. Critica Le Roy o milagre da Ressurreição de Cristo? Na exegese de
Loisy vai ele beber os princípios de que se socorre. É que, à maneira de subestrutura de todas essas construções, se ocultava, em alguns talvez
inconscientemente, uma filosofia desorientada. Não foi principalmente o
progresso das ciências históricas e bíblicas que acelerou a crise modernista,
como por aí se andou superficialmente afirmando. No campo dos fatos não havia
desacordo, a divergência acentuava-se na sua interpretação, na esfera dos
princípios filosóficos. Confessou Loisy: «ante a inteligência do crente o
simples conhecimento da história do dogma não levanta nenhuma dificuldade
nova... se o problema(cristológico) se põe de novo...é em conseqüência do
renovamento integral que já se efetuou e que ainda continua na filosofia
moderna». (Autour
d’un petit livre, pp. 129, 202). E
em trabalho posterior: «Não é a origem deste ou daquele dogma em particular
que entra em discussão atualmente: é a
filosofia geral do conhecimento religioso».(Quelques lettres, p. 157)
Foi
esta filosofia geral do conhecimento religioso, por todos os modernistas
implicitamente suposta e por nenhum lealmente proposta em toda a sua extensão,
que ao mundo católico, em síntese admirável de clareza e exatidão,
apresentou a Encíclica Pascendi (1907). As novas
doutrinas, antes nebulosa esparsa e incoerente, aí aparecem, como núcleos
definidos a gravitarem na ordem lógica de suas dependências relativas.
Em
todo o orbe acordou o importantíssimo documento uma repercussão imensa.
Em
alguns, a acusação nascia da estreiteza de vistas. Encantoados numa
especialidade, não se elevavam à altura dos grandes princípios que a
informavam e iam repercutir em outras disciplinas. Assim, o exegeta não se
julgava solidário dos desvios do filósofo, o historiador desligava a sua
responsabilidade das aventuras do teólogo. Esqueciam todos que o papa não
condenava diretamente um indivíduo, mas uma doutrina, não feria um modernista,
mas o modernismo em todo o âmbito de suas manifestações polimorfas. Em outros
revia manifestamente a má-fé. Professores ou escritores católicos, haviam
eles falado muitas vezes em harmonia, ao menos verbal, com os ensinamentos
tradicionais. O erro se lhes insinuava por entre a verdade. Nada mais espontâneo
a um amor próprio ferido, que a idéia de respigar uma meia dúzia de trechos
irrepreensíveis e florear a paveia artificial, como pendão triunfante de
ortodoxia, contra as malsinações do papa. Era um expediente desleal do
primeiro momento, à espera que a crítica, sincera e conscienciosa, em magnífica
apologia da sinceridade do documento pontifício, enfileirasse, atrás de cada
afirmação da Encíclica, uma série irrespondível de asserções modernistas.
A fidelidade foi muitas vezes levada à identidade verbal. Esse desabafo
explosivo de cóleras mal domadas então não se justificava, mas entendia-se. O
que se não justifica nem entende, o que é tristemente deplorável é que,
volvidos quase 20 anos, um foliculário qualquer
venha julgar o documento do papa e tachá-lo de calunioso, estribado nestes
libelos nascidos na efervescência dos primeiros ódios e despeitos.
Nos
ambientes católicos, a Encíclica foi acolhida, não só com a submissão
devida à palavra do supremo pastor a quem Cristo confiou a missão de confirmar
na fé a seus irmãos, mas ainda com entusiasmo pelo seu elevado valor
doutrinal. “É uma obra-prima de verdade!” escrevia o periódico belga Revue
des sciences philosophiques et théologiques, 1907, p. 648.
Entre
muitos acatólicos sérios e desinteressados na pendência, a atitude foi de
respeito e mesmo de admiração. A uns impressionou a solidez da estrutura científica
da Encíclica, como ao filósofo Gentile, que nela viu «una magistrale
esposizione e una critica magnifica dei principi filosofici di tutto il
modernismo». Paulsen, professor de Berlim, reconheceu a primeira origem das idéias
profligadas. «É bem provável, diz ele, que todas as doutrinas condenadas na
Encíclica sejam de origem alemã». (Internationale
Wochenschrift, 7 de dez. 1907). A outros causou maravilha a exatidão e o tom
de sinceridade do papa. «O que é notável e novo é que a Encíclica expõe o
modernismo, não sob a forma de caricatura mas com uma espécie de objetividade
e quase em todo o seu encanto». (Aulard, Progrès
de Saône et Loire, 27 set. 1907).
O
próprio Tyrrel, contradizendo-se à distância de poucas linhas, confessou num
artigo do Times que «o retrato do
modernista era tão sedutor que a leitura da Encíclica constituía um perigo
para os filhos dos século». (Times,
30 set).
Expondo doutrinas
«O
Cristianismo, escreveu Fontenelle, é a única religião que tem provas”. E só
a Igreja Católica sabe respeitar plenamente os direitos da razão. Se alguém
lhe bate à porta, antes de lhe impor a fé, fala-lhe à inteligência, antes de
lhe exigir a sujeição, mostra-lhe os títulos de seus direitos, exibe-lhes as
credenciais de sua missão divina.
A
existência de Deus pessoal e transcendente, Criador e Providência, é o
primeiro alicerce da vida religiosa. Prová-lo à evidência, eis o objeto da teodicéia.
Cristo
apareceu na plenitude dos tempos, preparado e anunciado pelos profetas como
Filho de Deus, Mestre e Redentor da humanidade. Aos homens fala com acentos que
se não encontram em outros lábios humanos, entre os homens obra maravilhas que
só Deus podia obrar: si mihi non vultis
credere operibus credite
– Quando não queiras crer em mim, crede nas minhas obras. E o estudo profundo e minucioso, crítico e histórico,
da grande teofania, deste fato singularmente divino que domina a história do gênero
humano, fá-lo o tratado da Revelação cristã.
Intacta,
imutável, incorrupta, a doutrina salvadora do Evangelho deverá chegar a todos
os povos na perpetuidade do tempo e na universalidade do espaço, sobrevivendo a
todas as revoluções, a todas as vicissitudes dos homens e das coisas – única
firme na torrente das caducidades humanas que tudo arrasta nos vórtices de sua
constante mutabilidade. A uma instituição divinamente fundada é cometida esta
empresa árdua e sobre-humana.
Quais
os caracteres que distinguem a verdadeira sociedade das almas cristãs? Como
discerni-la hoje da multidão de igrejas que apelam para o Cristo? Estudo largo
e delicado, exegético e histórico, que enche as páginas dos admiráveis
tratados Da Igreja.
Sobre
a solidez logicamente inconcussa deste tríplice pedestal descansa a fé,
racional e serena. Magnífico monumento, glória imortal do trabalho incansável
de vinte séculos de cristianismo, honra não menos da inteligência católica
que da inteligência humana.
Apologética
Modernista
Tão
bem travada é a estrutura científica da nossa apologética que não há derrocá-la
sem ferir ao mesmo tempo a razão na essência de sua dignidade e atentar, em
assaltos de vandalismo destruidor, contra todas as construções intelectuais do
espírito humano. Fê-lo certa filosofia moderna que, num gesto de desalento, se
enclausurou na resignação de uma ignorância confessadamente incurável.
Perfilhou-lhe as negações céticas o modernismo superficial.
Não
bastam os protestos verbais com que os inovadores repeliram, em tom de indignação
hipócrita, a acusação de agnosticismo. É tarefa pueril conservar um erro e
repetir-lhe o nome. Para os que se não pagam de palavras,
o que antes de tudo importa é a realidade. E a realidade do
agnosticismo, reconhecida ou dissimulada, se acha toda na origem das doutrinas
modernistas. «Aceitamos, escrevem eles, a crítica que da razão pura fizeram
Kant e Spencer». (Programma dei
modernisti, p. 96).
Ora,
que fez Spencer, relegando o absoluto para o domínio do incognoscível, senão
ligar indissoluvelmente o seu nome ao agnosticismo? Não foi Kant quem negou à
razão o poder de atingir qualquer realidade supra-sensível? Não foi Kant quem
a condenou, ainda na esfera dos objetos sensíveis, a não lhes conhecer senão
as aparências determinadas pela categorias apriorísticas da nossa natureza?
Aceitar, pois os resultados da crítica da razão pura é emparedar-se nas
muralhas chinesas do mais absoluto subjetivismo agnóstico. Aqui a confissão
dos modernistas é mais explícita. «A crítica recente da várias teorias do
conhecimento leva a concluir que é tudo
subjetivo e simbólico no campo do conhecimento». (Prog.
Dei Mod., p.109)
É
que os modernistas declararam guerra sem quartel à inteligência na mais nobre
de suas funções. «Para nós não
existe a razão abstrata: só existe em função de outras faculdades
instintivas, cujas exigências e resultados assinala» (Prog.
Dei Mod., loc. cit). Se não existe a razão abstrata, que resta do nosso
patrimônio científico, todo ele baseado nos princípios especulativos por ela
formulados?
Tão
radical e tão antiintelectualista é a parte destrutiva da nova apologética.
Agora é mister construir. Se o edifício religioso já não pode descansar em seus fundamentos racionais, importa assentá-lo em novas bases. Se a inteligência não as pode subministrar, batamos à porta do coração, do sentimento, das exigências religiosas indefiníveis, dos impulsos latentes da subconsciência. Nestas penumbras talvez consigamos lobrigar o que se n os não depara na região luminosa da vida intelectual. Aí tocaremos a Deus com a experiência imediata. Ouçamos os interessados a descrever-nos a natureza desse novo conhecimento religioso como uma "experiência atual do divino que opera em nós e no todo...experiência do divino que se realiza nas profundezas mais obscuras da nossa consciência e leva-nos a um sentido especial das realidades supra-sensíveis". Pouco depois, esse novo sentido do divino se transforma num «senso ilativo...com o qual nos é dado aferrar, no seu inefável mistério, a presença de energias superiores, com as quais nos achamos em contato direto» (Prog. dei mod., pag. 96-97). «A forma nativa [das verdades de fé], escreve Loisy, é uma intuição sobrenatural e uma experiência religiosa, não é uma consideração abstrata ou uma definição sistemática de seu objeto». (Autour d'un petit livre, pag. 200) (...)
Eis, pois, a origem da vida religiosa: uma emoção a irromper das escuridades profundas da nossa alma. Por uma espécie de reação espontânea,esta emoção provoca uma representação de ordem cognoscitiva. Aqui entra pela porta do coração, a inteligência. Já ouvimos o programa dos modernistas a proclamar que a razão só existe para assinalar as exigências e os resultados das faculdades instintivas.
Loisy pouco difere quando afirma que «diversamente das percepções de ordem racional e científica, a percepção das verdades religiosas não é fruto só da razão. É um trabalho da inteligência executado, por assim dizer, sob a pressão do coração, do sentimento religioso e moral, da vontade real do bem» (Autour d'un petit livre, pag. 197). Neste impulso do sentimento religioso que aflora à consciência consiste para o modernista a Revelação: «O que se chama revelação não pode ser senão a consciência que o homem adquiriu de suas relações com Deus».(ibid. pag. 195) (...)
De quanto fica dito, claramente se vê que a parte construtiva da apologética dos modernistas é toda baseada na imanência. Eles já não o contestam. (...)
No sentido mais geral, o imanentismo afirma que só quanto se inclui na esfera de nossa atividade subjetiva, quanto é por nós experimentado e vivido, pode ser objeto de conhecimento. Aplicada à questão religiosa, o novo sistema pretende que Deus se deve buscar dentro, não fora de nós. Aqui ainda, a imanência pode ser utilizada como método ou afirmada como doutrina. Como doutrina, a experiência interna constitui já a afirmação de Deus; como método, essa experiência subministra apenas o ponto de apoio de uma verdadeira demonstração.
Das tendências e exigências religiosas de nossa alma se pretende inferir a realidade capaz de as satisfazer. É legítima, semelhante inferência? Não, evidentemente. Uma religião que satisfaz aos desejos profundos da alma, às suas mais íntimas aspirações, convém ao sujeito, é boa. Será, por isso mesmo, verdadeira? Ainda não; da bondade à verdade não se pode passar sem intermediários. A transição torna-se de todo impossível quando se trata de uma religião sobrenatural; o sobrenatural, por definição, se acha fora das exigências da natureza. O método imanente não pode, portanto, construir exclusivamente um vestíbulo racional do cristianismo. Como complemento, porém, da apologética externa, presta-lhe inestimáveis serviços. Os argumentos externos demonstram a verdade da religião, os internos a sua bondade; aqueles falam à inteligência, estes ao coração; uma apologética integral enfeixa-os harmoniosamente na síntese perfeita de suas demonstrações.
Esse admirável trabalho tem sido empreendido por inumeráveis autores católicos. Aos modernistas, porém, veda a lógica a utilização da imanência-método, acima descrita. A argumentação que parte das tendências naturais descansa em princípios especulativos, em princípios de ordem abstrata, que não podem ter valor objetivo para quem mutilou a razão com o subjetivismo kantista.
Só lhes resta pois, a imanência-doutrina, a afirmação de que a nossa experiência religiosa aferra imediatamente a Deus. Neste intuicionismo pseudo-místico vão ainda adiante, pretendendo que a emoção já é uma manifestação do infinito imanente, uma aparição do divino nas profundidades da consciência. Ultrapassamos destarte os limites da mais tolerante ortodoxia e entramos afoitamente no panteísmo com todos os seus perigos e absurdos. (...)
Com efeito, se todo o conhecimento de Deus se reduz a uma experiência que tenta sentir o divino na consciência ou na natureza; se nos é impossível elevar-nos dos efeitos criados à causa primeira, segundo os processos lógicos e naturais do espírito humano; se o divino é objeto de intuição direta e a intuição direta não atinge senão o próprio ato consciente, por que não identificar Deus com a própria consciência? (...)
E assim, de decadência em decadência, de erro em erro, de abismo em abismo, os modernistas mais lógicos justificaram a destruição gradual da fé e da vida religiosa assinalada concisamente na Encíclica: «O primeiro passo foi dado pelo protestantismo (de Lutero), o segundo pelo modernismo (na alheta de Kant e Schleiermacher), o seguinte precipitará no ateísmo.
Aí estão as inevitáveis conseqüências das aberrações religiosas destes incautos doutrinadores que uma crítica míope tentou aureolar com a glória de libertadores do pensamento católico e restauradores do cristianismo primitivo.
A ENCÍCLICA “PASCENDI”
Das
eminências a que chegamos agora, e com um recuo histórico de quase 20 anos,
podemos apreciar, em toda a sua grandeza, o valor excepcional do grande ato de
Pio X. Depois de multiplicar por vários anos os conselhos e admoestações
paternas, a intervenção enérgica e decidida do Papa foi, ainda uma vez, na
história, uma afirmação da dignidade do homem e uma defesa dos direitos
intangíveis de Deus.
Repare o leitor como o autor fala aqui de dignidade do homem, sempre na ordem da natureza humana e não da pessoa humana. A distinção é importante diante do pensamento moderno, até mesmo dos Papas , a partir de João XXIII até João Paulo II, que quer atribuir à pessoa humana direitos inalienáveis. Ora, se a natureza humana tem uma dignidade que lhe vem de sua semelhança para com Deus, aumentada pela encarnação do Verbo, e pelo nosso batismo, que nos eleva à vida sobrenatural divina, já a pessoa humana, sendo pecadora e fraca, só terá dignidade na medida em que viver da virtude e fugir dos vícios. E mesmo essa será uma dignidade de empréstimo, pois só Jesus Cristo, verdadeiramente é digno de honra, tendo conquistado com seu Sangue a remissão das nossas culpas. [nota de Dom Lourenço] |
Afirmou
a dignidade do homem, tutelando a integridade de suas forças intelectuais.
Contra as diminuições injustificáveis de todos os agnosticismos,
subjetivismos e relativismos, o Pontífice reivindica para a razão os direitos
inalienáveis de investigar os fundamentos
da fé; reconhece-lhe a capacidade de elevar-se ao conhecimento das
realidades supra-sensíveis, defende a verdade absoluta dos grandes e imutáveis
princípios que constituem a alma insubstituível da nossa vida intelectual.
Afirmou
a dignidade do homem, salvando a coerência da sua atividade moral. Nada de vida
religiosa ao sabor das flutuações do sentimentalismo, nada de ficções
degradantes a velar mal dissimuladas hipocrisias.
Unidade e continuidade entre a vida moral e intelectual, entre o cérebro
e o coração. Acima de tudo, a verdade na expressão natural dos grandes princípios
e na manifestação sobrenatural dos dogmas revelados, a imprimir aos atos
passageiros da nossa existência a orientação segura, coerente e constante das
coisas eternas.
Afirmou
ainda a dignidade do homem, defendendo a sinceridade religiosa do cristianismo.
É sabido como, entre protestantes, muitos pastores se resignam ao aviltante
mister de comediantes religiosos. O eclesiástico protestante, escreviam eles há
mais de um século, não é obrigado a subscrever uma profissão de fé senão
para a paz e tranqüilidade pública, sem
outro fim que o de conservar, entre os membros de uma mesma comunidade, a
união exterior.
Loisy
pretendeu aclimar entre católicos esta indigna hipocrisia. «O fiel adere com
sua intenção à verdade plena e absoluta figurada
pela fórmula imperfeita e relativa». (Autour
d’un petit livre, p.206). A intenção do fiel
vai à verdade absoluta (como e por que via a conhece ele?) enquanto os seus lábios
pronunciam palavras figuradas e simbólicas. Sendo assim, por que não podemos
amanhã recitar simultaneamente uma profissão de fé luterana, anglicana, muçulmana,
passando com os lábios pelo símbolo das palavras e aderindo com a intenção
à verdade absoluta, incógnita e incognoscível?
A
Igreja Católica não conhece essas transações vergonhosas com a sinceridade.
Não há “considerações pedagógicas” que a seus olhos legitimem a mais
abominável das hipocrisias, a hipocrisia religiosa. Quando ela nos impõe o seu
credo, exige dos nossos corações a adesão leal ao significado do que
pronunciamos. Quando dizemos “creio em Jesus Cristo Filho Unigênito de Deus,
Deus de Deus, Luz de luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro”, toda a nossa
alma, na plenitude de um ato consciente, se inclina em homenagem de adoração
ao Salvador. Outros poderão não ter essa fé; nenhum homem reto, porém, poderá
deixar de admirar a coerência, a lealdade, a nobreza de semelhante proceder.
Acima
da afirmação da dignidade do homem, a palavra do Papa foi principalmente uma
defesa das prerrogativas intangíveis da verdade divina. Quem não tem um
conceito exato, uma percepção viva da infinita, absoluta e inefável majestade
de Deus, na inviolabilidade soberana dos seus direitos, não pode entender a
intransigência dogmática da Igreja Católica. A Igreja não é autora de um
sistema humano, filosófico ou religioso, é depositária autêntica de uma
revelação divina. Cristo ensinou-nos uma doutrina celeste: “A doutrina que
eu vos ensinei é d’Aquele que me enviou.” (S. João, VII, 16; XII, 49).
Aos seus discípulos ordenou que a transmitissem a todo o gênero humano
na sua integridade incorruptível. “Ensinai-lhes a observar tudo o que vos mandei”.(Mat. XXVI, 20). E para que a falibilidade
humana não alterasse o depósito divino, prometeu-lhes a eficácia preservadora
de sua assistência. “Estarei convosco até o fim dos séculos.”
A
Igreja Católica tem, pois, promessa divina de imortalidade e infalibilidade. Não
foi, não será nunca infiel à sublimidade da sua missão. Quando a sinagoga,
alarmada com os prodígios que sancionavam o cristianismo nascente, prendeu os
apóstolos e lhes impôs um silêncio criminoso, Pedro respondeu aos sinedritas
um sublime non possumus. No volver dos
séculos nunca desmentiu a Igreja as promessas deste seu batismo de sinceridade.
Todas as vezes que o erro, armado como a força, mascarado como o sofisma ou sub
dolo como a política, bateu às portas do Vaticano, pedindo ou impondo-lhe uma
concessão, uma aliança, um compromisso, saiu-lhe ao encontro um ancião inerme
e venerável na candura simbólica de suas vestes, e, com voz firme e olhar fito
no céu, respondeu-lhe: Non possumus.
Após
quase dois mil anos, ecoando ao protesto necessário do humilde pescador da
Galiléia, outro humilde filho do povo opôs à mais refinada, altiva e perversa
aberração religiosa, a negação serena de sua divina intransigência.
E
o non possumus de Pio X, que foi uma reivindicação solene dos
direitos e da dignidade da nossa natureza, salvou ainda uma vez o cristianismo,
que, só, é fermento de vida da humanidade.