Publicamos abaixo o artigo de Dom Bernard Fellay, Superior-Geral da Fraternidade São Pio X, que faz um balanço da recente troca de correspondência com o Vaticano.

Fraternidade São Pio X

Carta aos Amigos e Benfeitores nº 62

Prezados Amigos e Benfeitores

Nosso mundo tradicional viveu realmente alguns acontecimento importantes nas suas relações com o Vaticano nesse dois últimos anos.

Desde a aproximação com Roma no fim do ano 200, parece-nos que já é tempo de analisar, de responder também a um certo numero de objeções ou de questões que surgem em torno dessa problemática. No entanto, gostaríamos também de lembrar que, mesmo se nos estendemos um pouco sobre essas questões, elas não são certamente tudo em nossa vida.  A celebração dos santos mistérios, as graças distribuídas abundantemente sobre vossas almas, as conversões numerosas e sempre tão comoventes, isso é o essencial de nossa vida. Esses fatos mostram que somos verdadeiramente católicos, enquanto que as relações e desavenças com o Vaticano exprimem apenas nossa vontade de assim permanecer. Nesses últimos tempos, um grupo importante de seminaristas de Bombaim se juntou a nós. Durante sete anos de seminário, onde a existência do diabo era negada, nunca a palavra “inferno” aflorava as aos seus ouvidos, assim como “sacrifício da missa”. Isso nos valeu, é claro, as fúrias do cardeal de Bombaim. Nos Estados Unidos, muitos padres se juntam a nós ou se aproximam. “Fiz de tudo para não procura-los”, me dirá um deles. É um testemunho eloqüente: depois de ter esgotado todas as possibilidades que se oferecem hoje em dia, a começar pela diocese, a missa do indulto e diversas sociedades Ecclesia Dei, esses padres  e seminaristas chegam a conclusão, apesar de sua vontade e seu medo inicial de se ligar àqueles que são rotulados como cismáticos, mas que mostram o único caminho viável para uma vida cristã integral. Que época de confusão! O bem é vilipendiado, o mal muitas vezes abençoado. É isso que experimenta hoje em dia inúmeros padres que querem simplesmente permanecer católicos.Quantos vexames! Como esses dois seminaristas chamados pelo reitor porque foram apanhados em flagrante rezando o terço. Mas quando foram apanhados assistindo a missa do indulto... tiveram que responder por seu crime diante do cardeal em pessoa... Gostaríamos de ter ouvido que reprimendas ao menos parecidas, tivessem sido dadas por todas as verdadeiras indisciplinas.

Enquanto um certo numero de padres se aproximam de nós, Campos se aproxima de Roma. Parece-nos que o argumento decisivo para atraí-los foi a promessa de um bispo ao lado de Dom Licínio Rangel, que já está muito doente. Eles me escreveram que não podiam recusar, diante da vontade do Santo Padre, que queria lhes dar um bispo: “isso seria cismático”. A guisa de bispo, eles tiveram de se contentar com uma promessa: “Eu te darei um sucessor”. Certamente, ninguém ousa por em dúvida tal promessa, mas toda a questão reside na pessoa desse sucessor: quem será? Onde será escolhido? Podemos imaginar que Roma quererá se assegurar da fidelidade do futuro bispo, pois alguns não abandonaram suas reservas quanto à ortodoxia da posição doutrinal de Campos. A suspeita reina em Roma.  

Haviam também prometido uma liberdade de ação em todo o Brasil, mas diante da oposição dos ordinários locais, o território da Administração fundiu-se até se reduzir à extensão da diocese de Campos, e foi tudo.

O que Campos vai fazer? Enquanto Campos se lança nessa tentativa aventureira com as armas das declarações ambíguas, constatamos um fenômeno muito interessante: ao mesmo tempo, várias comunidades do Brasil, estranhas à diocese e aos padres de Campos, tanto de irmãos como de irmãs, fizeram contato conosco e querem...juntar-se à Tradição! E mandar seus futuros candidatos ao sacerdócio para nosso seminário da América do Sul. De fato um número grande de fiéis disseminados um pouco por toda parte desse imenso país começam  a se manifestar e pedir nossa assistência... e não a de Campos.  Curioso desenvolvimento. Como se, derrepente, o Brasil se abrisse ao apostolado da Fraternidade. Somente o que nos falta são os operários, padres e mais padres...

Enquanto isso, depois de ter conseguido afastar Campos da Fraternidade e, pouco a pouco, de suas posições, o cardeal Castrillón nos enviou, dia 5 de abril ultimo, uma carta em resposta à nossa de 22 de junho de 2001. Propõe relançar o “dialogo”. Antes de dizer qualquer coisa, retomemos o histórico das relações. De inicio, com o oferecimento romano de nos dar uma estrutura jurídica, expusemos nossa disposição de abertura das discussões, insistindo, muito firmemente, na necessidade de reganhar a confiança.

Décadas de intrigas, de chega para lá, de ameaças, condenações, de verdadeiras perseguições por causa de nosso apego à Tradição da Igreja Católica não se apagam sozinhas. Pedimos, em conseqüência e de inicio, um gesto concreto por parte das autoridades romana: o reconhecimento da não ab-rogação do rito tridentino e a anulação do decreto de excomunhão.

O Cardeal Castrillón nos comunicou o acordo de principio do primeiro ponto acompanhado da recusa de pô-lo em aplicação. Mais tarde viria a recusa total, pois conceder à missa tridentina essa liberdade seria em detrimento do novus ordo. Quanto à anulação da excomunhão, nos foi prometida para o momento do acordo.

Depois dessa dupla recusa, que reforça ainda mais o clima de desconfiança, o cardeal escreveu uma carta do dia, 7 de maio de 2001. Respondi que essa carta instituía um dialogo de surdos e nos conduzia a um impasse.

Proporia então mudar o ponto de partida, o ponto de vista de toda a questão, afim de seguir adiante. Resumindo, mostraríamos que nossa situação atual de dissidência em relação a Roma atual não seria causada por má vontade culpável de nossa parte, mas por uma terrível crise que abala a Igreja há quarenta anos da qual o concilio Vaticano II e as reformas pós-conciliares são o sinal evidente: citamos alguns fatos para mostrar a realidade e a gravidade da crise.

Na carta de 5 de abril o cardeal nos critica:

1)     julgar o papa e a Santa Sé,

2)     afirmar que a Igreja perdeu a fé,

3)     negar ao soberano Pontífice seu direito sobre a liturgia, já que afirmamos que o Novo Ordo  é mau,

4)     ter perdido a fé no verdadeiro conceito de tradição,

5)     ser incapaz de perceber a continuidade que existiria entre o passado e o presente da Igreja, quer dizer, entre o passado e o concilio Vaticano II com sua reforma litúrgica.

Esses pontos, evidentemente, pedem uma resposta.

Mas, ao mesmo tempo, essa carta ilustra bem o fato de que o diálogo de surdos não terminou; quanta incompreensão de nossa posição! Estaríamos dispostos a abordar, apesar de tudo, esses diferentes pontos, se tudo isso não fosse acompanhado de manobras que nos obrigam, mais uma vez, repetir: “O tempo de uma colaboração franca ainda não chegou”, como dizia Monsenhor Lefebvre em 1988 no momento das sagrações; essa frase conserva inteiramente sua atualidade. Essas manobras são duplas.

Por um lado o cardeal declara, em sua carta,  que, em vista da gravidade do caso, ele sempre se absteve de conceder entrevistas públicas; alguns dias mais tarde, ele expõe, numa entrevista à revista La Stampa, que a Fraternidade está dividida em dois grupos:

“Uma grande maioria que deseja ardentemente a reconciliação com Roma” “para aliviar a consciência”(carta de 5 de abril), e um pequeno grupo de fanáticos que não quer escutar nada”(quando, também, em sua carta, o cardeal indica sua vontade de não nos dividir).

Por outro lado, alguns dias depois de me enviar a carta de 5 de abril com todo um aparato de discrição (envelope duplo, reservado, confidencial), ele envia essa mesma carta por fax para três membros da Fraternidade. Não precisamos procurar para descobrir uma intenção, os fatos falam por si mesmo: há uma tentativa de divisão bem real; ela dita nossa atitude sem hesitar: se por à distância.

Em tais circunstâncias, a discussão não é razoável, é imprudente, impossível.

Verdadeiramente eles não nos compreendem.

São atos, fatos, declarações propriamente escandalosas que nos obrigam a uma recusa das novidades e um adesão redobrada ao ensinamento e à disciplina multissecular da Igreja Católica Romana, nossa Mãe.

A simples exposição  de fatos – por exemplo a visita do papa à sinagoga ou à mesquita, beijar o Alcorão, as libações da floresta de Togo, a recepção do tilac na Índia, gestos que escandalizaram profundamente os católicos em sua fé – não quer dizer que nós nos erigimos em juizes da Santa Sé. O mesmo para muitas declarações  e documentos.

Ou então é preciso simplesmente renunciar a pensar.

Quanto à reforma litúrgica, alguns cardeais puderam dizer que ela se afastava “de maneira impressionante, em seu conjunto como no detalhe, da teologia católica[1]”. E ainda mais recentemente  o cardeal Ratzinger pode dizer que “essa extensão do poder papal no domínio da liturgia deu a impressão de que o papa, no fundo, tinha todo o poder em matéria de liturgia, sobretudo se agisse por mandato de um concilio ecumênico. O efeito provocado por essa impressão foi particularmente visível depois do concilio Vaticano II. Que a liturgia seja um dom, uma realidade não manipulada, tudo isso tinha então  desaparecido da consciência dos católicos do Ocidente. Ora, o Concílio Vaticano I tinha definido o papa não como um monarca absoluto mas como a garantia da obediência em relação à Palavra revelada. A legitimidade da transmissão concerne particularmente a liturgia. Nenhuma autoridade pode “fabricar” uma liturgia. O próprio papa não passa do humilde servidor de seu desenvolvimento homogêneo, de sua integridade e da permanência  de sua identidade”.[2]

No que concerne a continuidade das doutrinas modernas com o passado, eis o que dizem as pessoas “acima de qualquer suspeita”sobre a liberdade religiosa, texto chave do concilio: “Não se pode negar  que tal texto [o texto do Concilio sobre a liberdade religiosa] diga materialmente outra coisa do que o Syllabus, de 1864, e mesmo quase o contrário dos parágrafos 15, 77 a 79 desse documento”.[3]

Sobre a definição da Igreja (Lumen gentium): “Não se pode, em ultima análise, resolver plenamente essa diferença entre “subsist” e “est”, de um ponto de vista lógico.[4]

Sobre o conceito de Tradição (Dei Verbum): “A recusa da proposição de tomar o texto de Lérins, conhecido e santificado de certa maneira por dois concílios, mostra de novo a distância entre Trento e Vaticano I, a contínua releitura de seus textos...[o concilio Vaticano II] para uma outra idéia da maneira como se reallisa a identidade histórica e a continuidade. O “semper” estático de Vincent de Lerins não lhe parece mais apropriado para exprimir esse problema”.[5]

Sobre o texto chave do concilio Gaudium et spes, ser um contra-Syllabus. “Se se procura um diagnóstico global do texto (Gaudium er spes), poderia-se dizer que é (ligando-o com os textos sobre a liberdade religiosa e sobre as religiões do mundo) uma revisão do Syllabus de Pio IX, uma espécie de contra-Syllabus... contentemo-nos aqui em constatar que o texto tem um papel de contra-Syllabus na medida em que representa uma tentativa de uma reconciliação oficial da Igreja com o mundo tal como se tornou depois de 1789”.[6]

 Quanto a nós, acreditamos no desenvolvimento homogêneo da doutrina como sempre ensinou a Igreja. Mas a fé, que não suspende o princípio da não contradição, obriga também a rejeitar o que não é esse desenvolvimento homogêneo.

Constatamos o quanto a apreciação do cardeal é errônea...Todos nós desejamos a unidade da Igreja, unidade que começa na , que continua em torno de Pedro que confirma seus irmãos, consumida na união com Jesus hóstia. Todos, para conservar essa unidade, devemos, em nome de nossa consciência católica, nos afastar e recusar tomar essa estrada larga e fácil proposta pelas reformas.

É para aliviar nossas consciências que estamos onde estamos e elas não serão aliviadas se nos lançamos precipitadamente em um caminho que recusamos durante trinta anos...para permanecermos católicos.

É em nome da fé de nosso batismo, é em nome das promessas de nosso batismo às quais prometemos ficar fiéis que dizemos não! a tudo que não consolida a segurança de nossa salvação.

Que o Sagrado Coração vos cumule de ardente caridade, de um amor indefectível pela Igreja, por sua hierarquia que, atualmente, nos faz sofrer; pelas almas, as almas a serem salvas pelo preço da união ao Sacrifício de Nosso Senhor, na santa Missa que nos fará penetrar sempre mais na firmeza da fé, em seu amor reparador e satisfatório. Tudo por Jesus, tudo por Maria, tudo pelas almas.

 + Bernard Fellay

 Na festa do Sagrado Coração , 7 de junho de 2002

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[1] Breve exame crítico dos cardeais Ottaviani e Bacci.

[2] L’esprit de la liturgie, Ed. Ad Solem, 2001, p. 134.

[3] P. Congar, La crise dans l’Église et Mgr Lefebvre, Cerf, 1976, p. 51

[4] Cardinal Ratzinger, « L’ecclésiologie de la Constitution Conciliaire Lumen gentium », La Documentation catholique, n° 2223, p. 311.

[5] Joseph Ratzinger, LThK, Bd 13, p. 521.

[6] Les principes de la théologie catholique, Téqui, 1982, p. 426

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