Apesar de já termos mostrado com dois textos que as dúvidas que pairam sobre a integridade das canonizações feitas pelo Papa João Paulo II são baseadas em questões objetivas, teológicas, e não em simples opinião nossa, algumas pessoas continuam a insinuar que essas dúvidas seriam por termos um espírito cismático. Para fortalecer ainda mais o fundamento teológico da nossa posição, respondendo às calúnias injuriosas, trazemos este trabalho publicado no jornal italiano SiSiNoNo, em sua versão brasileira, SimSimNãoNão, de março de 2003

 

IDÉIAS CLARAS SOBRE AS CANONIZAÇÕES

 

Um leitor nos escreve:

«Rvdo. Diretor:

Confesso que me acho perplexo, não só diante algumas beatificações, mas também com relação a uma canonização recente. Comumente se dá por certa a infalibilidade do Papa ao canonizar santos, mas, após efetuar uma investigação por minha conta, constatei que essa questão está muito longe de se achar definida...»

Assim é, com efeito. Ainda não há uma definição da Igreja a respeito disso, nem se pode falar de uma tradição constante sobre o assunto em questão.

Desde que a Santa Sé reservou para si as causas de canonização, os teólogos e canonistas discutiram, durante mais de nove séculos, sobre a infalibilidade do Papa ao declarar santa uma pessoa, dividindo-se em “infalibilistas” e antiinfalibilistas”. Apesar disso, começou a impor-se a tese infalibilista a partir de 1800, a tal ponto que hoje constitui uma “sentença comum” entre os teólogos (1). Mas que quer dizer isso? E que atitude deve tomar um católico diante de uma “sentença comum”?

 

“Sentença comum, mas ainda não fundada satisfatoriamente

 

«A sentença comum é uma doutrina pertencente, de si, ao âmbito das opiniões livres, mas sustentada comumente pelos teólogos» (2).

Quanto à atitude que se deve adotar com relação à ela, seria temerário quem se opusesse, «sem fundamento, à sentença dos demais em matéria teológica» (3), quer dizer, quem «se afastar sem motivo da doutrina comum» (4); mas, se se der tal “motivo”, tal “fundamento”, isto é, se houver razões fundadas para afastar-se da sentença comum, ninguém estaria obrigado a “fazer coro com os demais”.

No tocante à infalibilidade nas canonizações (todos convêm que não se dá a infalibilidade nas beatificações), alguns teólogos, mesmo sem se afastar da sentença comum, reconhecem que «a dificuldade do problema está em achar uma prova verdadeiramente satisfatória dessa infalibilidade cuja existência se afirma» (5). Assim se exprime o teólogo alemão Scheid. E Bartmann, que o cita, observa por sua vez que a tese “infalibilista”, mais que em «argumentos particulares e peremptórios», se funda em um «‘feixe de argumentos’, como se o número devesse suprir, de certo modo, a debilidade de cada argumento tomado separadamente» (6).

Tal debilidade dos argumentos “infalibilistas” foi há pouco posta em evidência por um estudo do dominicano Daniele Ols, professor no Angelicum e “relator” da Congregação das Causas dos Santos. O estudo em questão versa sobre os fundamentos teológicos do culto aos santos. Limitar-nos-emos aqui a resumir a parte atinente a nosso tema.

 

“Fato dogmático”?

 

Dois aspectos na canonização devem ser levados em conta:

1) A afirmação do princípio geral segundo o qual quem pratica as virtudes cristãs em grau heróico vai para o paraíso.

2) A aplicação desse princípio geral a um indivíduo concreto, particular.

Ora, ainda que é fácil demonstrar que o princípio geral está contido na revelação divina, «é evidente, apesar disso, que o fato de que Tício ou Caio viveram santamente não se contém nela, nem de maneira explícita nem implicitamente» (pág. 34). Daí vem que os teólogos digam, comumente, que as canonizações pertencem ao domínio dos “fatos dogmáticos”, ou seja, daqueles fatos não revelados de si mesmo, mas relacionados estreitamente «com uma doutrina que deve ser afirmada ou uma heresia que é mister condenar» (pág. 33). Assim se explica por que, «em geral, quem examina o problema se detém aqui e conclui asseverando que a Igreja pode canonizar infalivelmente» (pág. 34). Mas, no caso da canonização, dá-se realmente uma conexão necessária e estreita entre a proclamação da santidade de uma pessoa e a doutrina sobre a glória dos santos?

É evidente que a Igreja é infalível na condenação não só das heresias, mas também dos hereges individualmente considerados, assim como dos escritos heréticos, porque é rigorosamente necessário para sua missão «não só condenar erros em abstrato (freqüentemente pouco compreensíveis para muitos), mas mostrar também os fautores desses erros e os escritos que os propagam, de maneira que os fiéis possam manter-se longe deles» (págs. 33 e s.). O caso da canonização, no entanto – observa o autor do estudo - , «não é exatamente igual ao da condenação de um herege. No caso da condenação, está claro que nos achamos diante de um grave perigo para a fé dos cristãos e que a identificação precisa de tal perigo é necessária para a preservação da dita fé. Ao contrário, quando se trata da canonização, não temos nada disso. [...]. Não se seguiria um dano mortal para a fé em caso de erro, ainda que, salta aos olhos, seria algo muito desagradável. Em outras palavras, se os fiéis seguissem a Lutero, seria de mortal gravidade, mas se, por acaso, venerassem um santo que estivesse de fato no inferno, isso careceria de tal gravidade; e a dita veneração poderia aproveitar à sua vida cristã como se a rendessem a um santo autêntico, porque essa veneração teria por objeto a pessoa em questão unicamente enquanto considerada santa, amiga de Deus» (pág. 33).

O autor aduz, em confirmação do que disse, o caso dos «santos duvidosos ou até inexistentes», cuja devoção não acarreta nenhum dano, nem à doutrina católica, nem à fé dos devotos que os veneram, «por causa de suas (presumidas) virtudes cristãs, sinal de sua (também presumida) união com Deus». Tampouco os pedidos «formulados por meio da intercessão desses pseudo-santos» são forçosamente ineficazes, já que, ao ser a confiança na intercessão dos santos uma forma de confiança em Deus, «compreende-se que Deus ouça favoravelmente uns pedidos que, por falta de intermediário, vão a Ele diretamente» (pág. 35; citação do bolandista (7) Delehaye). Daí a conclusão: «Por isso, como a canonização de tal ou qual pessoa não é necessária para a guarda e defesa do depósito da fé, não parece que a matéria da canonização seja tal, que esteja sujeita à infalibilidade» (ibi).

 

Uma semelhança só aparente

 

Demonstrada a debilidade do argumento principal dos “infalibilistas”, o autor passa a examinar «a fórmula da canonização solene», que «se considera geralmente como a prova de que o Papa pretende empenhar sua infalibilidade na canonização».

Apesar do fato de que falta nas canonizações “eqüipolentes” (8) (o qual traz algumas dificuldades aos “infalibilistas”), a fórmula das canonizações solenes só em aparência é idêntica às fórmulas dogmáticas, por exemplo, às usadas por Pio IX e Pio XII para definir, respectivamente, o dogma da Imaculada Conceição e o da Assunção da Santíssima Virgem. Idêntica nada mais que em aparência porque, segundo observa o autor, «estas últimas fórmulas dizem explicitamente que uma determinada doutrina deve ser crida (ou que constitui um dogma revelado por Deus, que vem a ser o mesmo). A fórmula da canonização é mais vaga, posto que se limita a definir (o qual significa “determinar”), não que se deve crer que fulano de tal é santo, mas só que fulano de tal é santo». Tampouco a fórmula da canonização diz «que tipo de assentimento o fiel deve prestar  à definição», enquanto que nas fórmulas dogmáticas está claro que as doutrinas definidas devem ser cridas por serem reveladas por Deus e, por isso, com fé divina.

Para comodidade de nossos leitores, transladamos aqui as fórmulas usadas por Pio IX e Pio XII, e depois as que costumam ser empregadas nas canonizações.

«Declaramos, pronunciamos e definimos que a doutrina que defende que a Beatíssima Virgem Maria [...] foi [...] preservada imune de toda mancha de culpa original foi revelada por Deus e, por conseguinte, deve ser crida firme e constantemente por todos os fiéis (esse a Deo revelatam atque idcirco ab omnibus fidelibus firmiter constanterque credendam, lê-se na bula dogmática Ineffabilis Deus, de Pio IX; «pronunciamos, declaramos e definimos ser dogma divinamente revelado (divinitus revelatum dogmam esse) que a Imaculada Mãe de Deus, a sempre Virgem Maria [...] foi assunta em corpo e alma à glória celeste. Por isso, se alguém [...] ousar voluntariamente negar ou pôr  em dúvida o que por Nós foi definido, saiba que desertou totalmente da fé divina e católica», lê-se na bula dogmática Munificentissimus Deus, de Pio XII.

Muito mais vagas e genéricas são as fórmulas das bulas ou, para nos expressarmos com mais propriedade, das cartas decretais de canonização: Sanctum esse decernimus et definimus (canonização de São José Kalinowski: 17 de novembro de 1991); Sanctos et sanctam esse decernimus et definimus (canonização de São Pio V, Santo André Avelino, São Félix de Cantalice e Santa Catarina de Bolonha: 22 de maio de 1712). Salta aos olhos a diversidade sublinhada pelo autor.

 

A carência de anátema e uma evolução significativa

 

A diversidade substancial que medeia, apesar de algumas semelhanças aparentes, entre as bulas dogmáticas e as canonizatórias se confirma por carecer estas últimas do anátema com que se encerram as bulas dogmáticas, assim como pela evolução sofrida na cláusula tradicional das bulas de canonização.

A primeira bula de canonização conhecida (9) é também a única em que figura um anátema. Mas, naquela época (ano de 993), o “anátema”, como se adverte no decreto de Graciano, não sancionava um delito contra a fé, mas correspondia a uma forma mais grave de excomunhão por um delito de desobediência, «pelo que estaria absolutamente fora de lugar tratar de inferir, da existência daquele [único] anátema, a existência de uma definição dogmática».

Não só já não figura o anátema nas seguintes bulas de canonização, mas tampouco se faz censura ou ameaça alguma de sanção até Gregório XI (1371). Aparece com este Papa uma cláusula que, a partir de Pio II (canonização de Santa Catarina de Sena: 1461), se usou em todas as bulas de canonização até João XXIII, «com amplificações que não mudavam sua substância»; daí que constituísse a cláusula tradicional, por assim dizer. Ameaçava-se nela com «a indignação de Deus onipotente e dos Santos Apóstolos S. Pedro e S. Paulo» a quem ousasse contraire (“ficar contra”) a bula papal. Depois, a dita cláusula (presente ainda nas duas primeiras bulas de canonização do Papa Roncalli) deu lugar a fórmulas cada vez mais brandas, que se limitavam a recordar as penas previstas pelo direito para os desobedientes (10), até desaparecer de todo nas canonizações do próprio João XXIII e nas de Paulo VI (11) e João Paulo II (12).

Esse desaparecimento confirma que a cláusula tradicional sublinhava a autoridade do Papa, mas não sua intenção de comprometê-la no grau em que é infalível: quer dizer, advertia «sobre as penas divinas e humanas em que incorreria quem desobedecesse», razão pela qual «se podia suprimi-la sem mudar nada da substancia das coisas, porque é sabido, ainda que se não mencione, que quem desobedece ao Papa se expõe à indignação divina e às penas previstas pelo direito».

Deve notar-se, com efeito, que, diferentemente das bulas dogmáticas, na cláusula tradicional das bulas de canonização «não se ameaça com a indignação divina aquele que não crer na verdade da canonização, mas aquele que for contra [em latim: contra-ire], quer dizer, aquele que manifestar externamente seu dissentimento. Os anátemas das definições dogmáticas, ao contrário, condenam antes de tudo os que não crêem na verdade definida, e somente depois os ameaça com censuras se expressarem publicamente sua dissensão» (págs. 41-42).

Eis aqui, a modo de exemplo, a cláusula da proclamação do dogma da Imaculada Conceição: «Pelo que, se alguém presumir sentir no coração [corde sentire] contrariamente àquilo por Nós definido, o qual Deus não permita, conheça e saiba com certeza que está condenado por seu próprio juízo, que naufragou na fé e se apartou da unidade da Igreja, e que ademais, por seu próprio ato, fica submetido às penas estabelecidas no direito se o que sente no coração, atrever-se a manifestá-lo em palavras ou por escrito ou de qualquer outra maneira» (Ineffabilis Deus).

Compare-se agora a cláusula anterior com a cláusula tradicional nas bulas de canonização: «Que a ninguém seja lícito violar o que Nós quisemos e determinamos neste texto ou ficar contra o mesmo com audácia temerária. Se alguém ousar tentá-lo, saiba que incorrerá na indignação de Deus onipotente e dos Santos Apóstolos S. Pedro e S. Paulo» (Nulli ergo hominum liceat hanc paginam nostrae voluntatis et constitutionis infringere vel ei ausu temerario contraire. Si quis autem hoc attentare praesumpserit indignationem omnipotentis Dei et beati Petri et Pauli Apostolorum eius se noverit incursurum).

Como se vê, falta, nas bulas de canonização, a primeira parte da condenação: aquela na qual se incorre por “sentir no coração contrariamente...”, ou, falando como os teólogos, por negar o internum mentis assensum (a adesão interna da mente); subsiste somente a segunda censura, a que é reservada a quem atuar contra a bula no foro externo, quer dizer, a quem não observar o que os teólogos chamam o silentium obsequiosum (o silêncio ditado pelo respeito), que não permite àquele que dissente em seu coração, contradizer publicamente a autoridade (salvo se se dá “um perigo de escândalo para a fé”, como veremos).

Para concluir e para tirar toda possível dúvida de que a cláusula tradicional das canonizações não prova a intenção do Papa de empenhar sua infalibilidade, sobressai-se o fato indiscutível de que a dita cláusula «não é própria das bulas de canonização, mas faz parte do esquema normal de qualquer bula, inclusive do esquema das que carecem de todo alcance doutrinal». Assim, por exemplo, Clemente VIII a usa tanto na bula de canonização de Raimundo de Peñafort, quanto na bula Ea Romani Pontificis, que estabelece a jurisdição, os privilégios, etc., dos auditores da Câmara Apostólica. Daí que «não se pode inferir» que «haja definições infalíveis nas bulas de canonização porque se ameace nelas com a indignação divina, visto que também são objeto da mesma ameaça os que não respeitam as tarifas estabelecidas para os notários, etc.» (pág. 41).

 

A “definitio” e o testemunho de Bento XIV

 

Por outra parte, o termo “definitio” figura nas bulas de canonização pelo mero fato de que «se emprega a palavra ‘definimus’ no corpo do documento», ainda que seja para denotar uma “determinação”, uma “decisão” do Romano Pontífice, não sua intenção de pronunciar-se infalivelmente, como nas bulas dogmáticas. Sobre isto temos o testemunho acreditado e decisivo de Bento XIV, que, ainda que se inclinava pessoalmente para a infalibilidade do Papa nas canonizações, contudo, afirma ser lícito sustentar a tese oposta, a “antiinfalibilista”, o qual ele não poderia afirmar se a cláusula tradicional de canonização - usada por ele também na única canonização de seu pontificado - manifestasse a intenção papal de pronunciar uma sentença infalível, como queriam os “infalibilistas”.

 

“Certum est” e “pie credendum est”

 

O autor se detém também na posição de Santo Tomás, «a quem às vezes se quis contar no número dos infalibilistas, mas que propõe, na realidade, uma solução de senso comum, fundada na convicção segundo a qual o Espírito Santo assiste a Igreja, sem que se requeira, no caso específico das canonizações, que a dita assistência garanta a infalibilidade» (pág. 45).

Interrogado sobre o assunto, Santo Tomás responde, com efeito:

1) É certo que é impossível que a Igreja erre quando julga em matéria de fé (certum est quod iudicium ecclesiae universalis errare in his quae ad fidem pertinent impossibile est).

2) Ao contrário, é possível que a Igreja erre ao julgar fatos particulares, por causa de testemunhas falsas (possibile est iudicium ecclesiae errare propter falsos testes).

3) A canonização dos santos se acha «a meio caminho» entre os dois casos precedentes [medium est inter haec duo]; não obstante, dado que a honra tributada aos santos é uma profissão de fé na glória destes, deve-se crer piamente [pie credendum est] que tampouco nestes casos pode errar o juízo da Igreja (Quodlibet 9, a. 16).

O autor sublinha as diferentes fórmulas empregadas por Santo Tomás: em matéria de fé, “é certo” que é impossível” que a Igreja possa errar: certum est quod [...] errare [...] impossibile est; no tocante às canonizações, ao contrário, Santo Tomás diz que “se deve crer piamente” que tampouco nelas pode errar a Igreja: pie credendum est quod nec etiam in his [...] errare possit. Ora, a expressão pie credendum est, assim como a análoga pie creditur (“há razões para crer piedosamente”), são usadas por Santo Tomás cada vez que «nem existe nem pode existir um ensinamento infalível da Igreja sobre algo, por carecer de base na Revelação (ou porque não se trata de realidades necessárias para a salvação), o que não impede que se dêem motivos, mais ou menos decisivos, para pensar que as coisas sejam de uma maneira determinada». Os ditos motivos nos são dados pelo «conhecimento geral que a Revelação nos dá acerca da maneira de agir habitual de Deus». Donde se depreende que o pie credendum est usado para a canonização significa que, «não tendo a canonização um fundamento preciso na Revelação, nem podendo tê-lo, não pode ser considerada como ato garantido pela infalibilidade, mas como um ato que a fé que temos na assistência geral do Espírito Santo à Igreja nos convida a considerar como isento de erro» (pág. 48).

 

Conclusão do autor

 

Essa parte do estudo relativa à infalibilidade nas canonizações se conclui com a sentença de Bento XIV, que distingue duas questões cuidadosamente.

1) É de fé que as canonizações são infalíveis?

Bento XIV, ainda que inclinado pessoalmente para a infalibilidade, respondeu assim a essa primeira pergunta: «parece-nos que ambas as opiniões [infalibilista e antiinfalibilista] devem deixar-se em sua probabilidade até que intervenha o juízo da Sé Apostólica» (De servorum Dei I, 1 e 45, nº 27).

Na falta desse juízo definitivo, põe-se esta segunda questão:

2) É lícito negar a santidade deste ou daquele canonizado?

Bento XIV responde que quem negar a santidade deste ou daquele canonizado particular seria, «se não herege, ao menos temerário; escandaloso para toda a Igreja; injurioso para com os santos; favorável aos hereges, que negam a autoridade da Igreja na canonização dos santos; suspeito de heresia, abrindo o caminho aos infiéis para que se mofem dos fiéis; defensor de uma proposição errônea, e merecedor de penas gravíssimas» (ibid., nº 28).

Como é lógico, assim como as censuras evocadas pelas bulas de canonização, também essas “notas” de Bento XIV valem para quem, “sem motivo suficiente”, negar ou colocar em dúvida publicamente a santidade deste ou daquele canonizado, mas não para quem em “seu coração” tenha ou creia ter “motivos fundados” para negá-la ou duvidar dela, mas observe o silentium obsequiosum, abstendo-se de exteriorizar publicamente sua dissensão (pág. 49, nota 126).

 

Nossa conclusão

 

A tudo isso acrescentamos nós que “um perigo de escândalo para a fé” pode tornar lícito, inclusive obrigatório, até no caso das canonizações, romper o silentium obsequiosum para com a autoridade, conforme ensina Santo Tomás: «quando há um perigo para a fé, os súditos são obrigados a repreender seus Prelados, mesmo em público» (Suma Teológica IIª-IIae, q. 33, a. 4 ad 2); e diz também, citando São Gregório: «se o escândalo nasce da verdade, é mister antes suportar o escândalo que abandonar a verdade» (op. cit. IIIª parte, q. 42, a. 2 ad 1).

O dito perigo dar-se-ia se se chegasse (Deus não o permita!) à canonização de João XXIII e Paulo VI para dar crédito ao concílio e à catastrófica mudança de rumo imposta ao mundo católico, ainda que o primeiro não gozasse mais do que de uma fama postiça, fabricada, de ser um homem de “natural bonachão”, ao passo que da pessoa do segundo não emanava nada que recordasse, nem de longe, o odor de santidade. Assim, torna-se sobremaneira útil, nas circunstâncias históricas atuais, ter idéias claras também sobre a infalibilidade nas canonizações, para o qual pensamos que o estudo resumido acima pode constituir uma valiosa ajuda.

 

Hyrpinus

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(1) Vide E. Piacentini, Infallibile anche nelle cause di canonizzazione? [Infalível também nas causas de canonização?], Roma: E. N. M. I., 1994.

(2) L. Ott, Compêndio de teologia dogmática, ed. Herder, 1956, pág. 23.

(3) S. Cartechini, S. J., Dall'opinione al dogma [Da opinião ao dogma], ed. La Civilta Cattolica, 1953, pág. 137.

(4) L. Ott, op. cit., pág. 24.

(5) Scheid, Zeitschrift f. Katolische Theologie [Revista de Teologia Católica], 1890, pág. 509

(6) B. Bartmann, Manuale di Teologia Dogmatica, vol. Iº, ed. Paoline, 1949, Pág. 65.

(7) N. do T.: Um “bolandista” é um membro da sociedade de jesuítas belgas encarregados na edição dos Acta Sanctorum. Seu nome deriva do sobrenome do padre J. Bolland, de Amberes (1596-1665).

(8) Dá-se a canonização solene quando o Papa pronuncia «uma solene declaração formal sobre a santidade do beato», dá-se a canonização “eqüipolente” quando o Papa «se limita a dispor que um beato seja objeto de culto por parte da Igreja universal» sem pronunciar «fórmula alguma que possa denotar definição» (pág. 36, nota 93). Trata-se de um fato que traz sérias dificuldades aos “infalibilistas”, as quais desaparecem se se admite, pelo contrário, «que nenhuma canonização põe em jogo a infalibilidade» (ibi).

(9) Trata-se da bula de João XV para a canonização de Ulrico.

(10) Iustis poenis plectetur (será castigado com as penas merecidas), lê-se na canonização de João de Ribera (1960), Martinho de Porres (1962) e Antônio Maria Pucci (l962), sciat se poenas esse subiturus iis iure statutas qui Summorum Pontificum iussa non fecerint (saiba que sofrerá as penas estabelecidas no direito para os que desobedecem às ordens dos Sumos Pontífices), lê-se na canonização de Maria Bertilla Boscardin (1961).

(11) Só na canonização de Júlia Billiart (1969) reaparece a fórmula empregada para Maria Bertilla Boscardin.

(12) Somente na canonização de Miguel Febres Cordero (1984) figura uma cláusula com a fórmula, mais branda ainda, quae egimus ac decrevimus sancta sunt, nunc et in posterum (o qual julgamos e estatuímos que seja inviolável, agora e para o futuro).