ESTUDO TEOLÓGICO DAS SAGRAÇÕES EPISCOPAIS DE 1988

“As Sagrações episcopais de Sua Ex.ª Revm.ª D. LEFEBVRE foram necessárias 

apesar do ‘NÃO’ do PAPA”

Parte I

 

 

Dez  anos transcorreram (1988-1998) desde as sagrações episcopais efetuadas por S. Ex.a. Revm.a. D. Marcel Lefebvre. Nestes dez anos o "estado de necessidade" da Igreja e das almas, ao qual ele apelou para motivar o seu gesto, se agravou ulteriormente. Julgamos, por isso, sumamente útil publicar dois estudos produzidos pelo Si Si No No sobre o assunto um teológico e um canônico necessariamente resumidos mas cremos exaustivos, para que as almas não se privem, por falta de informação adequada, do socorro que a Providência, por meio da obra de D. Lefebvre lhes quis oferecer nestes tempos de extraordinária crise na Igreja. Iniciamos pela publicação deste estudo teológico.

 

Premissa:

Estas notas não são para aqueles que negam a existência duma crise eclesial de excepcional gravidade, quer por não terem olhos para vê-la ou por terem interesse em negá-la; as observações presentes se dirigem aos que, embora admitindo que haja uma crise extraordinária na Igreja, contudo não sabem justificar, à luz da doutrina católica, a atitude extraordinária tomada por D. Lefebvre a 30 de junho de 1988, quando, não obstante o "não" do Papa, transmitiu os poderes da ordem episcopal a 4 membros da Fraternidade por ele fundada.  

*

Como se sabe, D. Lefebvre justificou o seu ato alegando o estado de necessidade. A força desta causa de escusa não foi avaliada pelas autoridades vaticanas, as quais não a contestaram no plano doutrinário, mas responderam com um argumento de fato, ou seja, que não havia estado de necessidade [1], sabendo bem que, se ele existisse, o ato de D. Lefebvre teria sido plenamente justificado, mesmo no que toca à negativa do Papa, pela doutrina católica sobre o estado de necessidade.

A força da justificação usada por D. Lefebvre evita, pelo contrário, subir mais, pelo simples fato de não ser, geralmente, muito conhecida a doutrina católica sobre o estado de necessidade, relativo aos casos extraordinários aos quais se aplicam princípios extraordinários. Nós nos propomos, em vista disso, elucidá-la, embora brevemente, para que, em matéria tão grave, se proceda com uma consciência bem informada e, por conseguinte, tranqüila.

Os princípios que aduziremos encontram-se em qualquer tratado De caritate erga proximum, De poenitentia (iurisdictio in specialibus adiunctis = jurisdição em circunstâncias extraordinárias), De Legibus (particularmente de cessatione legis ab intrinseco et de epikia sine recursu ad principem = epiquéia no sentido próprio sem recurso ao Superior), como também nos vários dicionários de teologia e direito canônico, nas palavras caridade, eqüidade, epiquéia, causas que escusam da obrigação legal, impossibilidade, necessidade, obediência, resistência ao poder injusto, cessação da obrigação da lei, etc.

Antes de mencionar os princípios fundamentais sobre o estado de necessidade e de aplicá-los ao caso em questão, urge sublinhar que é um contra-senso admitir uma crise extraordinária na Igreja e, ao mesmo tempo, pretender avaliar o que foi feito em tais circunstâncias extraordinárias com a medida das normas válidas nas circunstâncias ordinárias. É contrário à lógica e à própria doutrina da Igreja.

A lei, de fato, "deve fundar-se nas condições mais comuns da vida social e, por conseguinte, faz necessariamente abstração daquelas que se apresentam só raramente" [2]. E Santo Tomás diz: "As leis universais... são estabelecidas para o bem da massa. Por isso, ao instituí-las, o legislador tem presente o que acontece ordinariamente e na maior parte dos casos" (S. Th. II, II, q. 147, a. 4). Portanto continua Santo Tomás nos casos "que sucedem raramente" e nos quais "ocorre... o dever de agir à margem das leis ordinárias", "é preciso julgar com base em princípios mais altos do que as leis ordinárias" (S. Th. II, II, q. 51, a. 4). Estes "princípios mais altos" são os "princípios gerais do direito divino e também humano" (Suarez, De Legibus 1. VI c. VI, n.° 5) que requerem o silêncio da lei positiva.

A Igreja nos autoriza aplicar tais princípios quando, para os casos não previstos pela lei, remete aos princípios gerais do direito e ao parecer comum e constante dos Doutores, o qual, precisamente por ser comum e constante, se deve julgar canonizado pela Igreja [3].

Admitido isto, oferecemos, para a comodidade dos leitores, um prospecto dos argumentos de que trataremos a seguir:

  1. Deveres e poderes de um Bispo em estado de necessidade

2. Solução do problema colocado pela negativa do Papa

 

1. Deveres e poderes de um Bispo em estado de necessidade

   

Estado de necessidade e seus diversos graus

O estado de necessidade consiste "numa ameaça aos bens espirituais, à vida, liberdade e a outros bens terrenos"  [4].

Se a ameaça diz respeito aos bens terrenos, existe necessidade natural; se é relativa aos bens espirituais, há necessidade espiritual, tanto "mais imperiosa do que a material', quanto os bens espirituais são mais importantes que os materiais [5].

Na realidade podem ocorrer vários graus de necessidade espiritual, mas os teólogos em geral distinguem cinco delas:

1) necessidade espiritual ordinária (ou comum): é aquela em que se encontra qualquer pecador em circunstâncias ordinárias;

2) necessidade espiritual grave: na qual se acha uma alma ameaçada em bens espirituais de grande importância, como a fé e os bons costumes;

3) necessidade espiritual quase extrema: em que está uma alma que, sem o socorro alheio, muito dificilmente se poderia salvar;

4) necessidade espiritual extrema: na qual se encontra uma alma que, sem o socorro alheio, não poderia salvar-se ou poderia tão dificilmente que a sua salvação se pode julgar moralmente impossível;

5) necessidade espiritual grave geral ou pública: na qual estão muitas almas ameaçadas em bens espirituais de grande importância, como a fé e os bons costumes. Canonistas e teólogos dão, comumente, como exemplo desta necessidade espiritual geral ou pública as epidemias e a difusão pública duma heresia [6].

Atual estado de grave necessidade espiritual geral ou pública, ou seja, de mui­tas almas

Hoje existe um estado de grave necessidade espiritual generalizada (ou pública), porque muitos católicos estão ameaçados na fé e nos bons costumes pela difusão pública e incontestada do neomodernismo ou da autodenominada "nova teologia", já condenada por Pio XII, como sendo o acervo de erros que ameaçam subverter os fundamentos da Fé católica" [7], revivescência daquele modernismo já condenado por São Pio X como a "síntese de todas as heresias" [8].

Esta difusão pública dos erros e das heresias foi dramaticamente denunciada pelo próprio Paulo VI que chegou a falar de "autodemolição" da Igreja [9] e de "fumaça de satanás no templo de Deus" [10], e foi admitida também por João Paulo II no início do seu pontificado por ocasião dum Congresso para as missões populares, nestas palavras:

"É preciso admitir com realismo, com profunda e pungente sensibilidade que os cristãos hoje, em grande parte, se sentem perdidos; confusos, perplexos e até iludidos; espalharam-se, a mancheias, idéias opostas à verdade revelada e sempre ensinada; propalaram-se verdadeiras e explícitas heresias no campo dogmático e moral originando dúvidas, confusões, rebeliões; alterou-se a liturgia; imersos no "relativismo" intelectual e moral, e daí no permissivismo, os cristãos foram tentados pelo ateísmo, agnosticismo, iluminismo vagamente moralista, por um cristianismo sociológico sem dogmas definidos e sem moral objetiva" [11].

Portanto, estado de grave necessidade pública ou geral: grave, porque são ameaçadas a fé e a moral; pública ou geral, porque estes bens espirituais, indispensáveis à salvação, estão ameaçados em "grande parte" do povo cristão.

Hoje, após vinte anos de pontificado, a situação não só não mudou, mas se deve afirmar notavelmente agravada. "Era de crer reconheceu já Paulo VI que depois do Concílio haveria uma temporada de sol para a História da Igreja. Ao contrário, veio uma temporada de nuvens, tempestades, dúvidas" [12]. Neste clima de "nuvens", "tempestade" e "dúvidas", as almas, apesar de tudo, devem tender ao porto da eterna salvação durante o breve tempo de prova concedido a elas. Quem pode negar que, em geral, hoje muitas almas se acham em estado de "grave necessidade espiritual"?

  1° princípio: a grave necessidade de muitos se equipara à necessidade extrema de cada um

É doutrina comum dos teólogos e canonistas que a necessidade grave de muitos (geral ou pública) se equipara à necessidade extrema de cada um: "Gravis necessitas communis extremae equiparatur" (P. Palazzini, Dict. morale et canonicum, vol. I, p. 571).

É este um princípio fundamental, porque chega a dizer que na necessidade grave de muitos é lícito aquilo que o é na necessidade extrema de cada um. E isto assim explicam os teólogos por muitas razões:

1o.) porque, entre muitas pessoas em grave necessidade, não faltarão, em particular, almas em estado de extrema necessidade, numa epidemia, por exemplo, não faltarão almas incapazes dum ato de contrição perfeita e que, por conseguinte, têm necessidade, para salvar-se, da absolvição sacramental; igualmente, ao se difundir uma heresia, não faltarão almas incapazes de se defenderem dos sofismas dos hereges e, por isso, em perigo de perder a fé [12];

2o.) porque a grave necessidade espiritual de muitos é também uma ameaça ao bem comum da sociedade cristã: não só não é a necessidade de muitos escreve Suarez que não se torna extrema para as pessoas em particular, mas "em tal gênero de necessidade estão, quase sempre em grave perigo a própria religião cristã e a sua honra" [13].

É de notar que o bem comum se considera em perigo não só quando muitos são efetivamente prejudicados (em nosso caso: perdem a fé), mas também quando podem sê-lo (no nosso caso: podem perder a fé) pelo simples fato de subsistir uma causa objetiva que torna possível este dano [14].

Para julgar atualmente o bem comum em perigo, é suficiente a difusão de erros e heresias já condenados pela Igreja, que expõem as velhas gerações à perda da fé e privam as novas da transmissão integral da Doutrina, despojando a todos velhos e jovens dos bens a eles devidos pela Hierarquia, segundo a norma do direito divino natural e positivo e também a norma do direito eclesiástico (can. 682 do Código piano-beneditino e can. 213 do novo Código): doutrina e Sacramentos, cujos ritos são hoje deixados ao sabor da "criatividade", ou seja, "ao capricho dos particulares, sejam mesmo membros dos clero" já condenado por Pio XII na Mediator Dei. Isto basta para dizer que hoje não apenas muitas almas se encontram em estado de grave necessidade, mas também fica comprometido o "duplo fim pretendido pela Igreja: o bem da comunidade religiosa e a eterna salvação [das almas]" [15] e, por conseguinte, está em jogo é o comentário de Pio XII ao supracitado can. 582 "o sentido e o próprio escopo de toda a vida da Igreja" [16] e, em conseqüência, o bem comum.

2° princípio: a grave necessidade geral ou pública sem esperança de socorro por parte dos legítimos Pastores impõe, por direito natural e divino, um dever de socorro "sub gravi" que, para um Sacerdote e, especialmente, para um Bispo, se funda no próprio estado.

A quem cabe socorrer as almas em estado de necessidade? A título de Justiça (ex ofício), cabe aos legítimos Pastores; contudo se, por qualquer motivo que seja, vir a faltar o socorro deles, a título de caridade (ex caritate), este dever recai sobre quem quer que tenha a possibilidade de prestar socorro [16]. Santo Afonso e Suarez observam que o poder de ordem acrescenta ao dever de caridade um dever de estado: o dever do estado sacerdotal, instituído por Nosso Senhor Jesus Cristo precisamente para auxiliar as necessidades espirituais das almas [17].

É de notar que o dever de caridade, imposto pela necessidade das almas é um dever sub gravi, ou seja, sob pena de pecado mortal; de fato, o maior mandamento, o da caridade, obriga a socorrer o próximo em necessidade, principalmente espiritual, e obriga sob pena de pecado grave na necessidade extrema ou quase extrema, de muitos, que se equipara à primeira [18].

Por isso, escreve Génicot que "pode ser grave [se "cometida por omissão"] a obrigação de socorrer o povo que, doutra maneira, pelos esforços dos hereges e incrédulos, perderia a fé, sobretudo, porque às vezes é moralmente impossível aos mais simples reconhecerem os sofismas daqueles e, por isso, muitos provavelmente, se acharão em extrema necessidade" [19].

Este dever de caridade, em alguns casos, pode obrigar mesmo com risco da própria vida, fama e dos próprios bens. Santo Afonso diz que assim obriga a grave necessidade espiritual pública ou geral e, por isso, "há obrigação, com risco de vida, de administrar os sacramentos ao povo que, doutra maneira, estaria em perigo de perder a fé" [20]. Suarez é do mesmo parecer: "se eu soubesse que os hereges pregam uma heresia entre a povo, estarei obrigado a opor-me a estes mesmo com perigo (meu)" [21]. Por sua vez, Billuart escreve: "se um herege perverte com uma falsa doutrina uma comunidade inteira, um particular [isto é, o simples fiel e o sacerdote não oficialmente investido da cura daquelas almas] é obrigado, se puder, a impedi-lo com risco de vida. Se, de fato, qualquer um é obrigado a socorrer, com risco da vida, o bem comum temporal, com maior razão o deve fazer quanto ao bem espiritual. Tanto mais que, em tal caso, muitos particulares se encontrariam em extremo estado de necessidade. [22]

Atual estado de grave necessidade geral sem esperança de socorro da parte dos legítimos Pastores

A atual necessidade grave e geral das almas está, comumente, sem esperança da parte dos legítimos Pastores, por estarem estes em geral ou perturbados ou paralisados pelo fluxo neomodernista eclesial.

É inegável, de fato, que as "idéias opostas à verdade revelada e sempre ensinada", as "verdadeiras e explícitas heresias no campo dogmático e moral” pelas quais "os cristãos, hoje se sentem perdidos, confusos, perplexos" [11], ou são diretamente propagadas pelos membros da Hierarquia (Bispos e autoridades romanas) ou os encontram coniventes ou mudos. "A Igreja admitiu já Paulo VI se encontra numa hora de inquietação, autocrítica, dir-se-ia até de autodemolição... A Igreja chega quase a se golpear a si mesma" [9]; ele que, dum modo teologicamente exato, chega a dizer que hoje a Igreja e as almas são agredidas pelos próprios ministros dela, como nos tempos do arianismo, quando "sacerdotes de Cristo com­batiam contra Cristo" [23].

É um fato que Romano Amério, em Iota Unum, pôde documentar os desvios doutrinais do pós-concílio unicamente com "textos conciliares... atos da Santa Sé... alocuções papais... declarações de cardeais e bispos... pronunciamentos de conferências episcopais... artigos de L'Osservatore Romano"; em suma, com "manifestações oficiais ou oficiosas da Igreja hierárquica" [24], acrescentando à conclusão o fato de ter "a corrupção doutrinária cessado de ser fenômeno de pequenos círculos esotéricos" e "se tornado uma ação pública do corpo eclesial com as homilias, os livros, na escola e na catequese" [25].

No mesmo Iota unum, Romano Amério ilustra o que ele chama a "desistência" da Autoridade, ou seja, a renúncia da Autoridade Suprema ao exercício do poder recebido de Nosso Senhor Jesus Cristo para condenar o erro e afastar os errados [26]. "Tantos esperam assim diz Paulo VI do Papa gestos clamorosos, intervenções enérgicas e decisivas. O Papa não julga dever seguir outra linha que não seja a da confiança em Jesus Cristo, a Quem importa a Sua Igreja mais que a qualquer outro. A Ele caberá acalmar a tempestade" [9], o que é de fé, mas não exonera Pedro do dever de fazer as vezes de Cristo no governo da Igreja, retomando-lhe e endireitando-lhe o timão.

Quanto ao pontificado de João Paulo II, pode ser suficiente a seguinte declaração do Prefeito da Congregação para a Fé, cardeal Ratzinger, à Conferência episcopal chilena: "O mito da dureza vaticana frente aos desvios progressistas se revelou como sendo uma vã elucubração. Até hoje se emitiram fundamentalmente apenas advertências e em nenhum caso penas canônicas no sentido próprio" [27].

A "desistência" da Autoridade Suprema diante do erro e dos errados comporta a mesma desistência de qualquer outra autoridade na Igreja. O próprio cardeal Ratzinger o documenta no mesmo discurso ao episcopado chileno: "O mesmo Bispo que, antes do Concílio, havia destituído um professor irrepreensível por sua linguagem um pouco rústica, não chegou ao ponto de, após o Concílio, afastar um lente que negava abertamente algumas verdades fundamentais da Fé".

Ora, onde quer que as almas não podem esperar socorro dos legítimos pastores, impõe-se, a qualquer que possa prestá-lo, o dever sub gravi de o fazer aos católicos "em grande parte" "tentados pelo ateísmo, agnosticismo... por um cristianismo sociológico, sem dogmas definidos nem moral objetiva", e este dever incumbe, antes de tudo, aos Bispos e depois aos Sacerdotes, porque não socorrer as almas em estado de necessidade espiritual é não apenas contrário ao preceito da caridade, mas também é atitude "directe pugnans cum statu episcopali et sacendotali', "que contradiz frontalmente o estado episcopal e sacerdotal” (Suarez).

 

Dever de suplência dos Bispos

Este dever de socorro se impõe antes de tudo aos Bispos e a um título todo especial. Papado e Episcopado escreve o cardeal Journet "são duas formas, uma independente...; a outra subordinada, dum mesmo poder que vem de Cristo e é ordenado à salvação eterna das almas" [28]. Em palavras mais simples: Papa e Bispos são, na Igreja, por direito divino positivo, como marido e mulher na família por direito divino natural: o Bispo é subordinado ao Papa como a mulher deve sê-lo ao marido, mas ambos são ordenados ao mesmo fim: o bem da Igreja e a salvação das almas. E como se impõe, antes de tudo, à mulher um dever de suplência no limite das suas possibilidades, se o marido, com ou sem culpa sua, não cumpre bem os seus deveres, assim, acima de tudo, incumbe aos Bispos um dever de suplência, nos limites da sua possibilidade, quando o Papa, com ou sem culpa sua, não provir às necessidades das almas.

3° princípio: na grave necessidade pública, o dever de socorro é coextensivo ao dever de Ordem (e não de jurisdição) e o poder de jurisdição (pessoal) decorre do pedido dos fiéis e não do consentimento do Superior hierárquico (Ecclesia supplet iurisdictionem)

Em caso de necessidade, se é obrigado a prestar socorro, dentro do limite das próprias possibilidades; o que, para um Sacerdote e um Bispo, equivale a dizer dentro dos limites do próprio poder de Ordem.

É por isso que, em necessidade extrema de cada um e em grave necessidade de muitos, qualquer Sacerdote é obrigado sub gravi a dar a absolvição sacramental, mesmo se privado de jurisdição [6]. Santo Afonso escreve que até "o excomungado vitando, se pode validamente administrar os sacramentos, está obrigado a administrá-los ‘in articulo mortis' [necessidade extrema do particular = necessidade grave de muitos] por preceito divino e natural, a que não se poderia opor o preceito humano da Igreja" [29].

Em suma: quando o exige a extrema necessidade de cada um ou a grave necessidade de muitos, pode-se licitamente, e mais se deve sob pena de pecado mortal, tudo o que se pode fazer validamente em virtude do poder de Ordem. A jurisdição necessária se adquire, conforme o pedido das almas: veja-se o cân. 2261 §§ 2° e 3° do Código piano-beneditino, onde se diz que os fiéis podem "ex qualibet iusta causa" requerer os sacramentos ao Sacerdote excomungado [privado de jurisdição pela Igreja] e "então o excomungado, assim solicitado, pode administrá-los ("et tunc excomunicatus requisitu.s potest eadem ministrare"). "O seu (dos fiéis) pedido confere ao Sacerdote excomungado o poder de administrar os sacramentos", é o comentário do Pe. Hugueny O.P. [30]. Isto significa que, em caso de necessidade, o exercício do poder da Ordem, em toda a amplidão necessária, é posto em ação, não pela vontade do superior hierárquico, mas diretamente pelo estado de necessidade: "a ação proibida noutras circunstâncias se torna lícita e permitida pelo estado de necessidade" assim traz a Enciclopedia Cattolica sobre a palavra necessidade (estado de).

Em tais circunstâncias extraordinárias a jurisdição que falta se diz "suprida" pela Igreja. O Concílio de Trento (Sess. 14, c. 7), de fato, nos assegura ser contra o pensamento da Igreja a perdição das almas por motivo de restrições ou limitações jurídicas: "muito piedosamente, para ninguém se perder por este motivo, foi sempre observado na Igreja de Deus que nenhuma restrição [jurídica] subsista em perigo de morte [extrema necessidade do indivíduo, à qual se equipara a necessidade grave de muitos]" [31]. E Inocêncio XI, cortando qualquer controvérsia sobre o assunto, estabeleceu definitivamente que, em caso de necessidade, a Igreja supre a jurisdição que falta mesmo para os Sacerdotes hereges, degradados e excomungados vitandos [32].

O pensamento e a prática da Igreja têm por fundamento o princípio que, em caso de necessidade, se impõe, por direito natural e positivo, um grave dever de caridade e que a Igreja não tem nenhum poder contra o direito divino e natural. Já citamos Santo Afonso: "ao preceito divino e natural não se poderá opor o preceito humano da Igreja". Suarez, por sua vez, escreve: "A  justiça ou a caridade mandam evitar... o dano do próximo e a este preceito (divino) não se pode opor racionalmente a lei humana" [33]. Santo Tomás, enfim, recorda que "as disposições do direito humano nunca podem contrariar o direito natural e a lei de Deus" (S. Th. II, II, q. 66, a. 7). Isto vale, preferencialmente, para o direito humano eclesiástico, ordenado a facilitar e não a impedir o exercício da caridade.

Por isso, o Pe. Cappello escreve ser certo que a Igreja supre a jurisdição para prover à extrema necessidade do indivíduo ou "à pública ou geral necessidade dos fiéis" [34]. "A razão é explica Santo Afonso que doutra maneira muitas almas se perderiam e, por este motivo, se presume razoavelmente a suplência da jurisdição por parte da Igreja" [35].

Noutros termos, como nas necessidades materiais as coisas voltam ao seu fim primordial, que é a utilidade de todos os homens em geral, assim, nas necessidades espirituais, o poder de ordem retorna ao seu primeiro destino, o de prover às necessidades de todas as almas em geral, e cai a limitação (ou privação total) da jurisdição oriunda das leis eclesiásticas [36]: "Qualquer sacerdote explica Santo Tomás em virtude do poder de ordem, tem poder indiferentemente sobre todos [os homens] e para todos os pecados; o fato de não poder absolver todos de todos os pecados depende da jurisdição imposta pela lei eclesiástica. Mas já que a “necessidade não está sujeita à lei" [Consilium de observ. Ieiun. De Reg. iur. (V Decretal) c. 4], em caso de necessidade, não está impedido pela disposição da Igreja de poder absolver mesmo sacramentalmente, dado que possui o poder de ordem" (S. Th. Suppl. Q. 8, a. 6).

("Sim Sim, Não Não" no. 76 - Junho/99)
 

Volta para o índice

Segue para a 2ª parte

Notas:

[1] Motu Proprio de 2 de Julho de 1988;

[2] Brisbois, A propos des lois purement pénales, em Nouvelle revue Théologique 65 (1938), p. 1072;

[3] V. can. 20 do Código piano-beneditino e F. M. Cappello, S.I. Ius suppletorium, em Summa iuris canonici;

[4] V. E. Eichman, Trattato di diritto canonico e G. May Legittima difesa, resistenza, necessitá;

[5] Santo Tomás, Summa Theologiae Suppl. q.8, a.6; v. também P. Palazzini Dictionarium morale et canonicum, verbete Caritas (erga proximum);

[6] Veja-se, por exemplo, Palazzini Dictionarium morale et canonicum, verbete Caritas; Billuart De Charitate diss. IV, art. 3o.; Genicot, S.J., Institutiones Theologiae moralis vol. I, 217 A e B, etc;

[7] Humani Generis 1950;

[8] Motu Proprio, 18 de Novembro de 1907;

[9] Discurso ao Seminário Lombardo em Roma, 7 de Dezembro de 1968;

[10] Discurso de 30 de Junho de 1972;

[11] L'Osservatore Romano, 7 de Fevereiro de 1981;

[12] V.E. Genicot, S.J., Instituciones Theologiae Moralis, vol. I, 217 B; Billuart De Caritate Diss. IV art. 3o.; Santo Afonso Theologiae moralis lib. 3, no. 27;

[13] F. Suarez, De Charitate disput. IX, sect. II, no. 4;

[14] V. Roberti-Palazzini, Dizionario di teologia morale ed. Studium, verbete Jurisdição suprida;

[15] Naz Dict. Droit Canonique verbete droit canonique col. 1446;

[16] Discurso (em francês) ao segundo Congresso mundial do apostolado dos leigos, Outubro de 1957;

[17] Santo Afonso, Theologia moralis, L. 6, tract. 4, no. 625 e Opere Morali ed. Marietti, Torino, 1848, tract. XVI, cap. VI no. 126-127.

[18] I Jo. 3,17; S. Th. IIa IIae, q. 32, a.1 e a.5, ad 2; q. 17, a.I; Billuart De Caritate dissert. IV, art. 3o.;

[19] V.E. Genicot, S.J., op. cit. vol. I, 217 B e C;

[20] Theologia moralis, L.3, tract. 3, no. 27;

[21] F. Suarez, De Charitate disput. IX, sect. II, no.4;

[22] De Charitate dissert IV, art. 3o.;

[23] São Jerônimo, Adversus Luciferianos;

[24] R. Americo, Iota Unum, ed. Ricciardi, 1a. edição, pp. 3-4;

[25] Ibidem, p. 597;

[26] Ibidem, p. 126 e ss.

[27] Il Sabbato, 30 de Julho / 5 de Agosto de 1988;

[28] Ch. Journet, L'Église du Verbe Incarné, vol. I;

[29] Santo Afonso, Theologia moralis, L. 6, tract. 4, no. 560;

[30] Somme Theologique, t. XIII La Penitence, p. 420;

[31] F. Suarez (De poenitentiae disput XXVI, sect. IV no. 6) se pergunta se este costume perpétuo e comum observado pela Igreja não seja de instituição divina. Em todo o caso — conclui — a Igreja não o poderia abolir, porque isto seria usar do poder "não para edificar, mas para demolir" (ibid);

[32] Santo Afonso, De Poenitentiae sacramento, tratado XVI, c. V, no. 92;

[33] F. Suarez, De Legibus, L. VI, cap. VII, no. 13;

[34] F. M. Cappello, S. J., Summa iuris canonici, vol. I, p. 258, no. 258, § 2o; v. também P Palazzini Dictionarium cit. verbete iurisdictio suppleta;

[35] Santo Afonso, De Poenitentiae sacramento, tratado XVI, c. V, no. 90;

[36] Santo Tomás, S. Th. IIa IIae, q. 66, a.7; cf. IIa IIae, q. 32, a.7, ad 3.